Com Caroline Abras brilhando, “O Mecanismo” não poupa ninguém na vergonha brasileira
“Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência”. É assim que a nova série da Netflix, “O Mecanismo”, abre cada episódio. Baseado no livro “Lava Jato – O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, do jornalista Vladimir Netto, José Padilha, Felipe Prado e Marcos Prado, diretores da produção, conseguiram transformar com fatos fictícios o que é realidade há décadas no Brasil: a corrupção. Sem poupar ninguém, a obra é um paredão de fuzilamento da República Brasileira.
Ao todo são oito episódios com média de 50 minutos de duração. Com personagens periféricos de ficção, nomes falsos e muita realidade explícita, “O Mecanismo” narra a saga do delegado Ruffo, interpretado por Selton Mello, e a agente Verena Cardoni, brilhantemente vivida por Caroline Abras. Ambos estão mergulhados em uma das maiores investigações de desvio e lavagem de dinheiro da história do Brasil.
Você já viu esse roteiro antes? Sim. Todos nós. Diariamente vemos. É por isso que já incomodou desde o lançamento, levando até mesmo a ex-presidente Dilma Rousseff, na última segunda-feira, 26, a se manifestar contra a série. A declaração levou a um boicote por parte de seus apoiadores, mas que acabou gerando mais visibilidade e curiosidade sobre os episódios que estão liberados no canal por streaming.
Mas o incômoda da Dilma parece dar a falsa impressão de que os fatos se restringem ao Partido dos Trabalhadores, o PT. Engana-se quem sai repetindo isso. De fato, a trama começa exatamente por onde começou a Lava-Jato, que foi na descoberta da aparelhagem endêmica do sistema brasileiro de corrupção durante o Governo Rousseff.
Entretanto, Padilha, que é o diretor brasileiro de maior sucesso comercial recente, não poupa ninguém. Sobra para o PSDB, PMDB, Michel Temer, até o Aécio Neves. José vai nas entranhas da sujeira nacional, mostrando não só os políticos, mas os outros membros que fazem de tudo para obstruir as investigações. De forma velada, há até mesmo uma crítica ao comportamento da Justiça, lenta e velha.
Padilha gosta de narrativas cujo personagem principal busca sempre um antagonista maior. Ou seja, o Sistema. Foi assim em Tropa de Elite, onde o Capitão Nascimento enxugava gelo contra a violência do Rio de Janeiro. Agora é a vez da dupla Ruffo e Verena herdar esse trabalho. Só que aqui não podemos dizer que estão combatendo algo inútil. Enquanto você lê esta crítica, outra fase da Lava-Jato pode estar sendo deflagrada e mais gente sendo presa.
Só que a atriz Caroline Abras rouba a cena. Carol, como é chamada na classe artística, sempre foi muito elogiada por suas atuações, mas agora ganhou uma chance de ouro e a visibilidade necessária para o seu talento. No começo, sua personagem parece sem graça, mas já no segundo episódio é a grande estrela da trama. Mais até que Selton Mello com Ruffo, outra linha de raciocínio importante. Na era do empoderamento feminino, lá está a forte Verena, mas que também chora e mostra os sentimentos.
O elenco, em si, tem altos e baixos. Alguns personagens soam caricato, outros brilhantes. Nesta última classe está Osvaldo Mil, que personifica Gilhome de forma misteriosamente intrigante e brilhante. O conjunto é bom e tem muito valor, porque encadear tanta gente envolvida em escândalo com atores é louvável para que o espectador não se perca nas analogias.
A fotografia também é bem interessante, lembrando muitas produções nacionais recentes, que valorizam o contraste de luz e um efeito soturno para diversas cenas. O giro das câmeras em determinados momentos também traz o sentimento de angústia que tanto se busca em obras assim. Traços até que foram usados em outras produções da Netflix, como “Jessica Jones”.
Outro ponto forte da trama é saber levar o espectador à identificação de cada um no enredo, mesmo com nomes trocados. E os trocadilhos são brilhantes, como a Galvão Engenharia, que se tornou Bueno Engenharia. Haja coração, amigo!
Muitos vão achar que “O Mecanismo” se assemelha ao filme “Polícia Federal – A Lei é Para Todos”, que estreou em agosto de 2017. Não se parece. Os fatos que são iguais. A corrupção que nunca cessa. As investigações que só aumentam e chegam aos nomes mais importantes deste país. Até por isso, a realidade é mais chocante que qualquer série.
A Netflix, depois de lançar “House of Cards” e “Narcos”, parece que chegou a uma obra ainda mais realista e impressionante, por ser atual e ainda em transformação. “O Mecanismo” não terá apenas uma temporada. O que é triste para o Brasil.