Nana Caymmi volta ao disco em tributo a Tito Madi
Dez anos depois do último álbum solo, a cantora lança o primeiro CD pela gravadora Biscoito Fino relendo 11 clássicos do compositor de ‘Cansei de Ilusões’ e ‘Chove Lá Fora’.
No Brasil, não há melhor porta-voz de paixões saudosas e desejos impossíveis, temas constantes em clássicos do samba-canção, do que Nana Caymmi. Ainda adolescente, ela ouviu vários exemplares do gênero na voz de Tito Madi, cantor e compositor paulista que reinava nas boates do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. A cantora já declarou em entrevista que as músicas de Tito foram as primeiras feitas no Brasil a chamar a atenção dela. Um atestado de qualidade e tanto, dado por quem é filha de ninguém menos que Dorival Caymmi.
Apesar da relevância de Tito, apenas Claudette Soares gravou um disco dedicado a ele, em 1976. Agora é a vez de Nana homenageá-lo, quebrando um hiato de dez anos sem lançar álbum solo. Nana Caymmi canta Tito Madi é seu primeiro CD pela gravadora Biscoito Fino. Em 11 faixas, a cantora de 77 anos se mostra em plena forma vocal, entendendo mais do que nunca as dores (e algumas delícias) do amor. É como se Nana esperasse desde a juventude o momento exato para interpretar uma obra de alta voltagem emocional que lhe serve de referência.
Em Nana Caymmi canta Tito Madi, ela se reconecta a parceiros de longa data. José Milton, produtor dos discos da cantora há 25 anos, assume mais uma vez a função. Dori Caymmi, irmão que Nana define como uma pessoa-chave em sua trajetória, e o pianista Cristóvão Bastos, um dos autores do sucesso Resposta ao Tempo, assinam os arranjos. O álbum também é um tributo a Emílio Santiago (1946 – 2013), que morreu justamente enquanto preparava um projeto com músicas de Tito. Nana era amiga íntima do cantor e decidiu levar a ideia adiante.
O melhor do cancioneiro de Tito foi registrado por Nana nesta homenagem, que traça uma linha do tempo entre 1954 e 1963, auge da carreira do artista. Frequente no repertório de fossa que se ouvia nas boates cariocas dos dourados anos 1950, Cansei deIlusões abre o disco. O elegante arranjo de Cristóvão foi formatado com o piano do músico, o violão de João Lyra, o baixo de Jorge Helder, a bateria de Jurim Moreira e o trompete com surdina de Jessé Sadoc, instrumento que se contrapõe ao canto doído de Nana. Ela demonstra intimidade com a canção, que já havia gravado ao lado do próprio Tito em disco dele, Quem é da Noite Canta (1987).
Outra música já conhecida na voz de Nana é Não Diga Não. No disco Voz e Suor (1983), gravado com César Camargo Mariano, o tratamento é de voz e piano. A parceria de Tito com o maestro Georges Henry agora surge renovada pelo arranjo de Dori, no qual o violão do músico e o piano jazzístico de Itamar Assiere formam a cama instrumental para Nana suplicar a permanência da pessoa amada em meio às sutis intervenções do trombone de Vittor Santos, do baixo de Helder e da bateria de Jurim.
A presença de dois arranjadores dá climas distintos ao álbum. Mestre em escrever para cordas, Dori as utiliza para reforçar a nobreza de algumas faixas. O violoncelo de Yura Ranevsky está na introdução de Chove Lá Fora, outra música representativa de Tito que Nana interpreta no tom exato, permitindo ao ouvinte imaginá-la contemplando a chuva caindo enquanto tenta entender por que o par foi embora. Em Canção dos Olhos Tristes, Dori incorpora, além do grupo de base, o violoncelo de Yura, viola e violinos.
Dori também assina os arranjos de Gauchinha Bem Querer – outra canção de amor perdido, em que o acordeon tocado por Itamar Assiere faz alusão à sonoridade dos temas tradicionais do sul – e de E a Chuva Parou. Esta é a única faixa de Nana Caymmicanta Tito Madi que não é do compositor, mas foi lançada por ele em 1957, mesmo ano da já citada Chove Lá Fora. O título da música de Ribamar, Esdras Pereira da Silva e Victor Freire dá a pista falsa de que tudo está bem. “Estás tão só e eu sem ninguém/ Volta depressa pro nosso bem” são versos que Nana canta com gosto.
Logo na sequência, o retorno é consumado – não sem lamento, pois é um disco de Nana cantando Tito Madi – em Graças a Deus Você Voltou, com o violino de Daniel Guedes dando um colorido especial ao arranjo de Cristóvão, que incluiu na trama sonora de Quero-te Assim apenas piano, baixo e o bandolim de Marcílio Lopes. Em Carinho e Amor e Sonho e Saudade, Cristóvão também opta pela suavidade instrumental, tendo como guia a percussão de Zé Leal.
Tito também foi um farol para aqueles que, com a bossa nova, mudaram os parâmetros harmônicos e poéticos da canção brasileira. Convidado para as reuniões do movimento no apartamento de Nara Leão por admiradores como Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, jamais apareceu. Mas não deixou de dar sua contribuição ao estilo com o clássico Balanço Zona Sul, que fecha o disco. Em tom sereno, como pede a leveza da letra, Nana canta a música ao lado do mano Dori.
O homenageado escutou o álbum ainda em fase de finalização e avalizou as 11 faixas. Dois dias depois, foi internado e morreu em 26 de setembro de 2018, aos 89 anos. Planejado para ser uma homenagem em vida, Nana Caymmi canta Tito Madi passa a transcender a admiração da cantora por ele. Simboliza a vontade de que a obra de Tito não seja esquecida e possa ser redescoberta. Interpretada por uma das maiores cantoras do mundo, ela alcança a eternidade.