Os 20 melhores lançamentos nacionais de 2020
Sempre é bom lembrarmos… Suscita pretensiosidade listas como essa, não acham? Deixamos claro: os VINTE melhores álbuns nacionais (aumentamos pelo crescente absurdo de lançamentos em tempos de pandemia) para o CULT MAGAZINE mediante o olhar particular deste que vos escreve. Pronto! Ah, e comentários são bem vindos em nossas redes sociais, já que COM CERTEZA algum poderá faltar na seleção particular de alguém. Observação: a ordem disponibilizada não é por juízo de valor, mas sim, aleatória…
SEPULTURA – “Quadra”
A mais internacional das bandas brasileiras (sempre melhor reconhecida no exterior do que por essas paragens), chega ao seu maior feito desde que Derrick Green assumiu os vocais, após a saída de Max Cavalera em 1996. A formação atual já havia impressionado “além da conta” com a relevância do anterior “Machine Messiah”, mas o brilhantismo de “Quadra” é a definitiva afirmação deste bardo. Mesmo em uma discografia (esse é o 15º registro autoral) tão imponente em termos de qualidade, ousadia e diversidade, está entre os cinco maiores feitos do Sepultura, sem dúvidas!
O trabalho é conceitual e baseado em numerologia, sua inspiração veio do livro Quadrivium, obra publicada em 2010 que fala sobre as quatro artes liberais: cosmologia, geometria, matemática e música. “Quadra”, o título, representa um espaço delimitado com um conjunto de regras onde as coisas acontecem, e o conceito explorado pela banda questiona o conhecimento das pessoas e por quais razões elas possuem suas crenças. O ouvinte é “hipnotizado” em todos os quatro blocos de três músicas presentes no disco. A coesão da banda impressiona e as performances individuais transparecem de forma sublime. Uma verdadeira jornada musical, OBRA-PRIMA!
LETRUX – “Letrux aos prantos”
A intenção fica tão clara, que obviamente já foi repetida muitas vezes por quem avaliou: após a festa onírica de “Letrux em noite de climão”, temos a consequência com bastante ressaca (física e moral) em “Letrux aos prantos”. Apesar da conexão direta com o trabalho anterior, em algumas faixas puramente dançantes, teatrais e cômicas, aqui tratamos primordialmente da força dos sentimentos, dores e conflitos existencialistas de Letícia Novaes. Aliás, é perceptível uma tendência para repetição dos temas, simultânea a uma alternância de palpitações, imagens e estilhaços do cotidiano.
A intenção é naturalizar todos esses estados, em um espiral de sensações melancólicas e muito mais agoniadas do que a sua estreia solo em 2017, após conduzir juntamente a Lucas Vasconcellos, o duo Letuce por 9 anos. Com participação de Lovefoxxx (Cansei de Ser Sexy) e Liniker, é a consagração DEFINITIVA de amadurecimento do Letrux perante ao grande público! Merecidamente indicado na categoria Melhor Álbum de Rock ou de Música Alternativa em Língua Portuguesa, no Grammy Latino 2020.
FERNANDA TAKAI- “Será que você vai acreditar?”
A mais “bossanovesca” das cantoras de rock brasileiras, conseguiu uma carreira solo tão consistente, que podemos dizer resplandecer mais atualmente do que o bom e velho Pato Fu. O lado mais sensível, minimalista e poético, em total consonância com sua doçura como intérprete e compositora, todo pareceu se destilar nessa bem sucedida incursão “solitária”. Este sexto registro (produzido pelo parceiro de vida e Pato Fu, John Ulhoa), lançado em pleno início do isolamento social, é uma das trilhas-sonoras dos tempos atuais em nosso país (“sobre a nossa fragilidade e impotência”, afirmou). A introdução com a bela reflexão “Terra Plana”, nos situa diretamente aos tempos estranhos que vivemos atualmente. “Não Esqueça”, do saudoso Nico Nicolaiewsky (nunca havia sido gravada) possui o verso “Não esqueça que é tudo ilusão, não esqueça de lavar as mãos”. Profético em tempos pandêmicos!
O talento para versões mais uma vez impressiona: “One Day In Your Life”, de Michael Jackson, e “Love Is A Losing Game”, de Amy Winehouse, soam personalíssimas dentro do caráter singelo proposto. A bossa-nova e o clima etéreo com sintetizadores ambient, continuam sendo o mote da diretriz sonora. As participações em dueto de Virginie (Metrô) e Maki Nomiya (Pizzicato Five) só agregam lindamente este álbum IRREPREENSÍVEL, que com certeza está entre os melhores produzidos no Brasil nessa década!
SURYA – “Amor, I’ Amour, Love” (Volume I e II)
A jovem curitibana Surya, é uma artista que precocemente “joga nas onze”: escritora, performer, atriz e cantora com prêmios diversos na seara de composição em festivais. Após ter ótima recepção com o EP “Moletom”, em 2018, ataca de “Amor, I’ Amour, Love” (Volume I e II). Dois álbuns ambiciosamente de “uma tacada só”! O primeiro cantado em português, onde o predomínio da música popular brasileira se faz presente, com ênfase no samba raiz e no formato clássico de canção em belíssimos arranjos de sopro e percussivos. O segundo em inglês (além de frases em francês) traz arranjos inspirados em jazz, blues e referência de pop internacional.
São 17 faixas, em que a poética traz uma linha narrativa com reflexões sobre o amor no sentido mais amplo (não romantizado), principalmente o impacto que causa no mundo em todo e quaisquer formato relacional, desmantelando sua raiz em crenças limitantes. O disco impressiona pela MATURIDADE musical, a produção de Eduardo Kuritza e Gabriel Carvalho é impecável. Muita consistência vocal (bela alternância entre suavidade e intensidade), poética, de arranjos e composição! Surya adentra essa década como uma das principais novas referências artísticas no país!
OS MUTANTES – “Zzyzx”
Os admiradores mais fervorosos sentem calafrios em ver o nome OS MUTANTES encabeçado apenas pelo guitarrista fundador Sérgio Dias da formação original. Radicalismos e gritos de sacrilégio a parte, a verdade é que após o retorno em 2006, a lenda continuou a produzir ótimos álbuns. Não, Arnaldo Baptista e Rita Lee, NUNCA sairão da aposentadoria e muito menos serão parceiros no grupo novamente. Sérgio se cercou de ótimos músicos (Camilo Macedo – guitarra e vocal, Claudio Tchernev – bateria, Esméria Bulgari – vocais e percussão, Henrique Peters – teclados e Vinícius Junqueira – baixo), e mostra o quanto sua mente brilhante ainda tem muito o que contribuir para a música mundial.
Este “Zzyzx“, não se parece com nada lançado anteriormente pelo grupo, é bastante concentrado no formato de canções (a maioria em inglês), com influências de Beatles e Byrds gritando, acompanhadas obviamente das incursões psicodélicas e jazz-rock de praxe. O formato é mais nostálgico e menos experimental que os anteriores lançados após o retorno. As composições são tão inspiradas, que os 39 minutos do disco “passam batido”, descem deliciosamente que é uma beleza! Se quiser degustar um punhado de ótimas músicas sem comparar com os clássicos, a diversão e o prazer estão mais do que garantidos. Caso contrário, realmente é bem diferente do material que fez Os Mutantes acontecer mundialmente, principalmente aquele deboche tão particular… Mas lamentamos bastante quem fugir da experiência, porque foi um dos melhores registros de 2020!
TATÁ AEROPLANO – “Delírios Líricos”
Tatá Aeroplano é um dos principais e mais ativos representantes da música contemporânea paulistana! Esse é o seu 15º registro a partir da banda Cérebro Eletrônico, no início dos anos 2000. Em “Delírios Líricos” mantém a formação que o acompanhou em seus cinco discos solo, inclusive na produção, com a maior parte das gravações sendo executadas ao vivo. Obviamente o que não falta aqui é coesão motivada por esse entrosamento. O ar cinematográfico e tropicalista característico de sua obra se mantém (com forte influência de Jorge Mautner), mas adquirindo ares mais nostálgicos dentro de uma sutil melancolia (a capa “entrega” esse estado, pelo ambiente consumido pela passagem do tempo). A psicodelia que é sempre notória, obviamente está presente, só que sem “explodir em cores”, os tons aqui são mais contidos e sensoriais.
A introspecção só ressaltou a BELEZA comovente do repertório. Pode parecer difícil em uma obra tão extensa e que sempre primou pela qualidade essa posição, mas “Delírios Líricos” é o seu maior ápice, uma obra-prima irrepreensível! A introdução com “Alucinações”, em incisões vocais de Bárbara Eugênia e Malu Maria, ressalta de forma catártica um curioso retrato sobre a situação política do Brasil, nos versos: “Nesse cinto que me aperta e me engole / Fico esperto e vejo as massas que escorrem / Pra morrer em nome de Deus”. “Nos pratos / Nas prateleiras / O veneno escorre”! SENSACIONAL!
ÀIYÉ – “Gratitrevas”
Larissa Conforto só não é mais multimídia porque o dia tem apenas 24 horas! Dj em festas alternativas, baterista das bandas Tipo Uísque e Ventre, e tendo acompanhado Vitor Brauer, Laure Briard, Numa Gama, Paulinho Moska (entre outros), produtora artística (trabalhou com Gilberto Gil, Alceu Valença e Caetano Veloso), um incisivo ativismo político, UFA! Todo esse percurso foi proeminente para um abrupto recomeço (fixou residência em Lisboa) como compositora, dentro do projeto eletrônico de caráter experimental ÀIYÉ (significa TERRA em Yorubá), através do impactante EP de estreia “Grativeras”. Como mesmo acentuou, o cerne criativo partiu de “espiritualidade, rituais, ritmos de resistência, saudades da avó, David Lynch e confissões em um universo solitário”. Nesse processo de imersão, gradativamente foi encontrando a identidade que permearia seu novo projeto (inclusive na personalidade como cantora).
A diversidade transgressora é o grande mote deste trabalho: base de texturas mais experimentais da música eletrônica (colagens de tambores sampleados em um universo que dialoga com uma visão futurista de ancestralidade), beats, pop barroco, funk carioca, spoken word e samba em alguns momentos. A verve poética permeia sobre “as trevas do retrocesso” clamadas no título, como a emblemática canção que foi o primeiro single, “O Mito e a Caverna”: “Recebemos a notícia do incêndio no Museu Nacional durante o percurso, e conversamos muito sobre o significado do fogo em todo esse contexto de ausência do poder público. Alguns dias depois, encontramos um canavial gigantesco em chamas e tiramos fotos. A gente não fazia ideia do tamanho do incêndio que esse mesmo fogo provocaria quando nos revisitasse, como foi a Amazônia”. Nos deparamos aqui com uma verdadeira revolução musical, onde vislumbramos O FUTURO da música brasileira. ESSENCIAL!
MARENNA MEISTER – “Out of Reach”
Figuras tarimbadas na cena hard rock brasileira (mais de 25 anos no cenário), Rod Marenna (Marenna) e o guitarrista Alex Meister (ex-Pleasure Maker) se unem para chegar ao OLIMPO sonoro do gênero, com o projeto Marenna-Meister e seu álbum de estreia “Out of Reach”. Não deveríamos estar surpreendidos pela excelência na execução do hair metal oitentista com incisão AOR e desbragadamente hard, vocais marcantes e melódicos, e uma base instrumental onde riffs e solos encantam primordialmente pelo feeling, precisão e bom gosto na execução.
Alex Meister já destilou seu talento em projetos ao lado de nomes como Mark Boals (ex-Yngwie Malmsteen) e Edu Ardanuy (Dr. Sin). Fora sua belíssima trajetória frente a banda Pleasure Maker, onde após três registros de extrema relevância, encerraram atividades em 2019. A exemplo de Meister, o cantor Rod em seu projeto solo teve vários trabalhos com distribuição em várias partes do planeta (Japão, EUA, Itália, Suécia). “Out of Reach” destila personalidade particular, simultaneamente em que remete aos momentos mais célebres das imponentes lendas do estilo. Um dos GRANDES discos na história do gênero, vários HINOS nascem aqui!
MAHMUNDI – “Mundo Novo”
O título, projetado antes da pandemia, soa profético. Mas a intenção era o aprofundamento do universo particular de Mahmundi, que acabou se confundindo com o nosso atual “Mundo Novo”. Pseudas confusões e trocadilhos a parte, Mahmundi em seu terceiro álbum solo, traz composições marcadas por encontros e desencontros, inquietações e descobertas, momentos de breve contemplação e versos sempre regidos por poderes sentimentais. É uma maturação do pop com ares nostálgicos que permeia a sua obra, mas a leveza e o lirismo das canções caminham para uma direção mais radiofônica.
“Um disco orgânico”, ela diz, “em que eu conseguisse fazer uma banda. Não toco nada. Faço produção e direção dele. Mas não era só chamar 5 músicos e pronto. A ideia era criar uma narrativa de som. São [músicos] de uma cena diferente da minha, mas que gostam da mesma coisa que eu.” Apesar de ter sido descoberta como grande artista recentemente, construindo uma sólida base de fãs e tendo se apresentado no Palco Sunset do Rock in Rio, deixa claro que o tom mais cancioneiro desse trabalho, em nenhum momento diminuiu a força criativa e versatilidade das inspiradíssimas canções. “Cada vez que um artista tem um pensamento criativo, ele é infinito. Cabe a ele não sucumbir a esse sistema padrão. Ainda ser gado. Eu não posso ser gado do entretenimento.” O “Mundo Novo” de Mahmundi deixa o nosso atual mais LEVE e FELIZ, asseguramos…
IRA! – “Ira”
Após a treta que já é sabida, onde a reconciliação das partes soava como praticamente impossível, um dos maiores nomes do rock nacional além de voltar a ativa, lança um novo álbum após 13 anos (o último havia sido o experimento eletrônico “Invisível DJ”, de 2007). E comemoramos não apenas o retorno de uma lenda que muita falta fez ao cenário, mas primordialmente pelo excepcional resultado do homônimo “IRA”!. Que DISCO meus senhores, toda a espera valeu demasiadamente a pena! O primeiro single acrescido de um comovente vídeo-clipe (gravadas em sua maioria nas dependências da Ocupação 09 de Julho), já mostrou que o buraco “estava bem mais embaixo”: “Mulheres a frente da Tropa”, homenageia mulheres marcantes que fizeram história por lutar pelos seus direitos, como: Marielle Franco, Dandara e Preta Ferreira.
A pauleiraça “Respostas” (Edgard “possuído nas guitarras”!) tem tudo para virar mais um dos muitos hinos que compõe o repertório da banda, assim como a etérea com ares “zeramalhianos”, “Efeito Dominó” (participação de Virginie do Metrô nos vocais), o estilo característico “IRA! de ser” em “Eu desconfio de mim” (indefectível duelo de vozes entre Nasi e Scandurra), o “post-punk” de “A Torre”, o mote político em “O Homem Cordial Morreu”, além da maravilhosa e singela “Chuto pedras e Assobio” (participação da cantora Bárbara Eugênia). Um dos MELHORES registros da nobre discografia da lenda paulistana! Ahaaa, uhuuuu, O IRA! ESTÁ DE VOLTA!
GIOVANI CIDREIRA E JOSYARA – “Estreite”
Dois baianos que há tempos fervilham em seus trabalhos individuais, Josyara e Giovani Cidreira literalmente desbundam criatividade e o lirismo que lhes é cabido em “Estreite”! As muitas ideias compartilhadas não resvalam apenas no experimentalismo que lhes é peculiar, mas em um apanhado de momentos incríveis, repletos de experiências sentimentais, sonoras e líricas, onde passado e presente dialogam numa sonoridade futurística e simultaneamente retrô. Passeiam pelo universo de sintetizadores, distorções e psicodelia dos anos 70, perfeitamente acentuadas pela ótima produção de Junix 11. .
Obviamente suas características primais acentuam-se mesmo em parceria, como a melancolia eletrificada de Cidreira, com seus sintetizadores, baterias eletrônicas, baixos synths, e a vibe mais percussiva com a guitarra atmosférica de Josyara. Na sutileza da faixa-título e de “Anos Incríveis” temos a maior percepção desse encontro harmônico sensacional! Ao mesmo tempo que preserva parte da identidade criativa de cada realizador, encontra nessa delicada convergência de ideias o estímulo para o NOVO! Extremamente GRATIFICANTE!
KIKO LOUREIRO: “Open Source”
Um dos musicistas brasileiros com maior visibilidade no exterior e praticamente uma unanimidade, o ex-Angra e atual Megadeth, prezou por lançar álbuns solos excepcionais (sempre no formato instrumental). Esse quinto registro é absolutamente primoroso! A versatilidade rítmica e de possibilidades exploradas em seu instrumento, o coloca em um patamar de excelência global. Impressiona a versatilidade musical que o faz transitar por sonoridades das mais díspares. “Viajamos” do jazz ao erudito e descambamos em sonoridades mais pesadas como thrash-metal ou experimentais de aura progressiva.
O auxílio luxuoso dos ex parceiros de Angra, Felipe Andreoli (baixo) e Bruno Valverde (bateria), além das participações do ex-Megadeth, a lenda Marty Friedman e de Mateus Asato, ambos guitarristas, também foram fundamentais para a contribuição pelo resultado incrível encontrado nas 11 faixas de “Open Source”. Tanto que a receptividade tem sido a mais ampla possível, não se atendo apenas aos ouvintes “clássicos” de música instrumental ou veneradores de “guitar-heroes”. É o grande “canto dos cisnes” da incursão solo de Kiko Loureiro. Um PRIMOR!
COLETIVO ACORDA AMOR – “Acorda Amor”
As cantoras Letrux, Luedji Luna, Liniker, Maria Gadú e Xênia França unem vozes e forças em um álbum coletivo, denominado poe elas como “disco de resistência”. O projeto aborda releituras de 16 “pérolas” lançadas entre 1957 e 2016, com o propósito de engajamento para provocar o despertar coletivo. E que REPERTÓRIO! Que EXECUÇÃO! É um daqueles álbuns que nos dão mais fé na vida, através do contraponto entre o vigor e o singelo das versões. Impressionante como as canções soam absurdamente atuais para o cenário contemporâneo, principalmente pela força dos seus versos.
O contexto permeia por temas urgentes que vão desde homofobia a racismo e feminismo, trazendo novos arranjos para canções célebres da vanguarda MPB, como “Sujeito de Sorte” (Belchior), “O Quereres” (Caetano Veloso), “Assumindo” (Leci Brandão) e “Comportamento Geral” (Gonzaguinha) passando também por sons da nova safra a exemplo de “Triste, Louca ou Má” (francisco, el hombre). Uma das melhores surpresas é o rap inédito “Sem Preguiça Para Fazer Revolução”, composto por Edgar, artista que ganhou projeção após sua participação no disco “Deus é Mulher”, de Elza Soares. Com a expansão da censura, ou dos valores cristãos radicais na sociedade brasileira atual, precisamos vislumbrar diariamente sinais de resistência COMO ESSE por parte da classe artística. NECESSÁRIO!
LUEDJI LUNA – “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água”
“A água é um elemento ligado às emoções e a Oxum. O álbum visual carrega referências sobre minha religião e meu entendimento enquanto mulher negra. “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água” é uma reflexão sobre afetividade de mulheres negras”, descreve a baiana Luedji Luna. Faz muito sentido também revindicar não querer ser vista APENAS como “porta voz de uma causa”, já que sonoramente nos deparamos com uma daquelas maravilhas que alivia, refresca e vicia, tal como as liberdades individuais que tanto almejamos. O aspecto sensorial também impressiona, a água permeia por cada parte de nossos corpos durante a audição. Tanto que veio acrescido de um belíssimo curta-metragem que complementa a experiência.
O disco se discorre de uma forma fluida e inesperada, mas sempre com conexões entre as faixas que alicerçam o conceito em uma possibilidade irresistível. Mais amadurecida do que em sua estreia “Um Corpo No Mundo” (2017), a nova jornada se desenha sobre elementos de MPB, Jazz, Blues e R&B. Simultaneamente, a narrativa da mulher preta em busca da justiça social marca presença dentre os temas do disco que permeiam a afetividade, a maternidade de primeira viagem e a independência. MAGISTRAL!!!
PESSOAS QUE EU CONHEÇO – “Ideologia Chinesa”
O produtor Lucas de Paiva, que já havia feito bonito no duo Opala, em companhia de Ana Jobim, nos surpreende no registro “Ideologia Chinesa”, de música eletrônica instrumental. “Tudo aqui é discotecável”, resume o texto de apresentação do trabalho, deixando claro que apesar da embalagem “pensante” que suscita o projeto, a intenção também é claramente divertir. O movimento acelerado das batidas e vozes suscita a passagem para um território repleto de criatividade no desenvolvimento do álbum.
São ambientações jazzísticas que descambam para o sinth pop japonês, pianos atmosféricos e o uso percussivo deveras bem destacado, que realçam a clara evolução mediante os primeiros lançamentos do produtor, fortemente influenciados pela trilha sonora de videogames e flertados diretamente com o pop oitentista. A diversidade das incontáveis camadas instrumentais é o que faz este registro ser tão ESPECIAL! As muitas referências emuladas (chama a atenção os elementos embutidos de música brasileira) em costuras irresistíveis pouco usuais, soam como um PRESENTE ao ouvinte após a audição. PESSOAS QUE EU CONHEÇO chega “chutando a porta” em nível altíssimo minha gente!
RASHID – Tão Real
É o rap brasileiro mostrando sua evolução e protagonismo cada vez mais acentuado a cada ano que passa! Versos que descambam em desafogo e protesto obviamente iriam se tornar mais incisivos em tempos tão delicados… Na vinheta que introduz “Tão Real”, Rashid determina que o registro não será engessado em um conceito específico, e sim livremente DE RUA. O álbum é uma soma de singles que funcionam como uma série de histórias sobre a vida urbana brasileira. Repleto de participações que vão de Duda Beat e Drik Barbosa, até Tuyo e Emicida, o disco consolida Rashid como uma das canetas mais fortes de sua geração.
A poética é trazida de forma intimista, mas obviamente aporta em temáticas políticas e raciais. A transição entre a abolição da escravatura até as mazelas do governo atual no país, aponta sua força no jogo de rimas e o evidente diálogo com o presente. Em batidas assinadas por nomes como Skeeter, NAVE Beatz e Grou, importante destacar o maior refinamento das vozes, o que subliminarmente fortalece a qualidade do projeto. Rachid além do personal manifesto, deixa bem claro que o rap nacional está em ÓTIMAS VOZES E RIMAS!
MACHETE BOMB – “MXT”
“Cavaco profano”, como seria isso? A denominação do Machete Bomb é o samba flertando com o hip-hop, metal alternativo e mais o que der na telha! Os curitibanos deixaram essa simbiose ainda mais as claras com o lançamento do ambicioso projeto MXT. O disco vem lotado de participações especiais com nomes que vão de BNegão a Tuyo, passando por Fred 04, Odair José, Mateo Piracés-Ugarte e Mulamba. A audição é complementada por vinhetas com áudios de todos os participantes, dando uma dimensão da magnitude da produção.
O cavaco conectado em múltiplas possibilidades na pedaleira diversificada, faz toda a diferença para a grande relevância do trabalho. Detalhe, o projeto foi impulsionado como um elemento fortalecedor para vencer um triste episódio na vida do líder e produtor Manu Madeira, que ficou viúvo com dois filhos para criar: “Com um peso de uma depressão forte, eu contei com a ajuda de alguns amigos e a música para tentar me levantar. Todos os convidados têm uma certa relação com a história que passei. Muitos eram amigos da Dani e têm um motivo especial para fazer parte. O Fred 04, por exemplo, foi quem me inspirou a tocar cavaquinho e a Dani me deu o cavaco de tanto que eu falava em Mundo Livre S/A. É uma obra feita por amigos e por pessoas que se admiram.” O coletivo solidário primal aliado ao talento de todos os envolvidos, nos entregou um DISCAÇO, o “cavaco metaleiro” veio para ficar!
MARCELO CALLADO – “Saída”
O multi instrumentista Marcelo Callado, é um dos bateristas mais requisitados do país. Integrante do grupo Do Amor e ex-participante da banda Cê, de Caetano Veloso, além de trabalhos com Ava Rocha, Kassim, Jorge Mautner, Arnaldo Antunes, Lucas Santana, Silvia Machete, entre outros… “Saída” é o seu quinto registro solo, e como o título determina, foi um “desabafo artístico” mediante ao isolamento imposto. Com uma relação afetiva desfeita após 20 dias de pandemia e apenas na companhia da filha pequena, o processo de gravação acabou sendo de urgência mediante as circunstâncias.
As trocas foram naturais e necessárias, o tempo precisava ser preenchido: aumentou-se as conversas com amigos, muita audição musical e leituras das mais diversas tiveram influência direta neste processo, que acabou não sendo tão solitário assim, já que várias parcerias se fizeram presente… O resultado é um punhado de belas canções, onde questionamentos pessoais, coletivos e cósmicos jorram de forma inspiradíssima. A sonoridade que alia força e sensibilidade, repleta de viagens sonoras que passeiam pelo estranhamento do universo pop, sincronicamente celebra o que de mais clássico abarga a sigla MPB. “Saída” mostra o quanto a arte é uma ferramenta importante pra nos levar a lugares melhores. Um disco que merece ser GUARDADO COM CUIDADO, como uma espécie de amuleto contra tempos sombrios!
DOMESTIC JUNKIES – “II”
“II” é o segundo álbum da Domestic Junkies, power trio carioca com ecos sólidos na sonoridade alternativa dos anos 90, em especial bandas de Seatlle, oriundas do cenário grunge. Formado em 2012 por Rogger Possatti e os irmãos Rayssa e Leonardo Baldez, o grupo retorna após sete anos da estreia do primeiro EP, lançado em 2013. A exemplo do disco anterior, Rayssa e Rogger se revezam entre bateria e guitarra com desenvoltura. O revezamento não se dá apenas na esfera instrumental, mas também no território das composições.
Além das influência citadas, o Domestic Junkies remete a ecos de Dinosaur Jr, Wipers, Metz, Hüsker Du, SmashingPumpkins e os conterrâneos pioneiros “noise”, do Second Come, como referência direta da simplicidade coerentemente punk e da energia visceral e distorcida, nas faixas que compõe este trabalho de extremo vigor e competência, aliando nostalgia e presente. A intenção sempre foi fazer muito BARULHO e reproduzir a insanidade caótica do seu extenso séquito de shows (são ativos nos palcos!), no escaldante subúrbio do Rio de Janeiro. E conseguiram! Capitaneado pelas pérolas “Daydreamer” e “Step Aside”, “II” é um dos MAIS INSPIRADOS discos do gênero nos últimos tempos!
MARTINHO DA VILA – “Rio Só Vendo a Vista”
O baluarte do samba Martinho da Vila entrega uma belíssima homenagem a história e os múltiplos recantos da cidade-maravilhosa, principalmente ao cidadão carioca e suas idiocrasias extremamente particulares. É uma ode de amor ao Rio de Janeiro! E fez questão que o caráter festivo se estendesse ao sentido coletivo que sempre abraçou: sete dos oito filhos de Martinho participam do coro nas faixas “Vila Isabel anos 30”, “Rio Chora o Rio”, “Canta Umbanda Nossa” e “Assim Não Zambi”; as filhas acompanham naquele formato clássico “Você, eu e a orgia” (samba feito para a Beth Carvalho); parcerias com Moacyr Luz (“Na ginga do amor”) e Verônica Sabino (“O Caveira e Pensando Bem”).
As rebentas já famosas de Martinho fazem bonito em dois candidatos a clássicos: Martnália (“Menina de rua”) e Maíra Freitas (“Assim não Zambi”), são irrepreensíveis em beleza e poesia! Vale frisar que não se ateve a celebração da cidade que personifica sua personalidade (embora nascido em Duas Barras, interior) o novo trabalho de Martinho é também uma homenagem ao chargista e cartunista Lan, o italiano mais carioca do planeta (desde que veio morar no Brasil em 1952) , é o autor da arte da capa (seu último trabalho, se foi ano passado). Impressionante como em seu 55º registro, o homenageado da vez da Unidos de Vila Isabel mostra FRESCOR, além do habitual BRILHANTISMO!
EDI ROCK – “Origens Parte 2 – Ontem, Hoje e Amanhã”
Edi Rock é uma das maiores lendas do rap nacional, entrincheirado contra o sistema sendo membro do Racionais MC’s, ou em carreira solo. Na segunda opção, quando voa livremente, musicalmente abre o leque de parcerias e referências, algo muito bem explicitado em “Origens Parte 2 – Ontem, Hoje e Amanhã”. “O ‘Origens Parte 2’ vem com uma linha de mensagem, não só política. Esse disco aborda vários assuntos. É como se fosse um livro sobre a minha vida, um diário, no qual estão o meu dia a dia, os meus pensamentos, as minhas opiniões, os meus problemas, a minha mente. Funciona também como uma terapia”, conjectura Edi sobre a perspectiva pessoal do projeto.
As participações especiais permeiam por nomes díspares que vão do velho parceiro de batalhas MV Bill, o pagodeiro Thiaguinho, passando pelo Nação Zumbi, Jorge Du Peixe, o expoente da cena trap, Flacko, a cantora Lourena e o nigeriano-americano Meaku, que agrega um afrobeat sincopado na faixa “Heads Up”. “Vidas Negras” e “Só Deus” foram motivadas pelos protestos #BlackLivesMatter, mas “Origens Parte 2 – Ontem, Hoje e Amanhã” vai muito além da estrondosa voz periférica habitual, celebra histórias de pessoas, da comunidade e da música brasileira com maestria. Fatalmente foi concebido mais um dos CLÁSSICOS do gênero!
TEM MAIS!!!
Foram muitos os álbuns que também poderiam estar aqui nessa relação, ainda mais em um ano com tantas produções musicais motivadas pelo isolamento, tanto por revelações, quanto por gente já com larga estrada na cena. Vamos lá: Caroline Alves (“Moonlight”), Olívia de Amores (“Não é Doce”), Sound Bullet (“Home Ghosts”), Priscila Tossan (“Iceberg”), Silva (“Cinco”), Lost Forever (“Unbreakable”), Mombojó (trilha-sonora de “Desalma”), Djonga (“Histórias da minha área”), Taurus (“V”).
Decepções do ano: Especificamente nenhum nome em especial, mas sim gêneros! A cena TRAP começou muito bem e nitidamente parece estar se perdendo em prol de um discurso mais raso e acessível, assim como a sonoridade. E o que falar da trilha-sonora desse governo que nos desgoverna, ainda estar “nas cabeças” como a música mais ouvida no país? Esse estilo nem preciosa ser mencionado aqui, todos sabemos qual é…
Por Alessandro Iglesias