“The Madcaps Laughs”: 50 anos da obra-prima de SYD BARRET
Após ser dispensado pelo PINK FLOYD, mesmo tendo sido o fundador da banda e o mentor do bem avaliadíssimo debut de estreia “The Piper at the Gates of Dawn”, Syd Barret foi internado em uma clínica psiquiátrica. Que banda cometeria a “insanidade” de dispensar o principal compositor e vocalista com as coisas dando tão certo? Qualquer uma nesse caso, infelizmente… Syd abusava do uso de ácido lisérgico, o que só servia para potencializar um notório problema mental GRAVE que nunca foi devidamente diagnosticado. Esquizofrenia para uns, autismo para outros… Infelizmente estava atrapalhando bastante. A ponto de terem convidado David Gilmour para cobrir qualquer “brecha” cometida por Barret. Exemplo, passou um show INTEIRO tocando um só acorde, olhando catatônico para o público. Não estava sendo nada fácil…
Mas seguidamente dessa breve internação (após o término tempestivo com uma namorada), antes do Natal de 1968, começou novamente a trabalhar em novas canções. Juntamente com a pintura, era quase uma obsessão quando produzia! Seu status de respeitabilidade na cena londrina, o levou até Malcom Jones, executivo recém contratado do selo “Harvest” na EMI com apenas 23 anos e fã de Syd. Percebeu que seu estado havia melhorado, e resolveu bancar perante os chefões da corporação, a sua estreia solo.
Havia mostrado alguma das canções compostas, e tinha um carinho enorme pela trova incisiva “Opel” (foi a música apresentada a gravadora). Em abril de 1969, após perceber a excelente forma de Barret, entraram em estúdio finalmente para o registro (o próprio Malcom produziria). Nessa primeira sessão, tudo fluiu tão bem, que SETE músicas foram gravadas com acompanhamento de violão cordas de nylon, guitarra e vocais. Simmm, a essência “Dylanesca”, um dos seus maiores ídolos, era a principal influência das canções. No dia seguinte convidou o baterista Jerry Shirley (recém adicionado ao Humble Pie, tinha apenas 16 anos) e alguns membros do grupo Soft Machine para continuar o trabalho.
Mas em conjunto, o processo definitivamente não funcionava. Syd voltava a seu estado abstrato de ser. Não mantinha contatos visuais com os outros músicos e muito menos instruções de como as músicas deveriam ser tocadas. Quando respondia alguma coisa, era algo do tipo “pode ser mais crepuscular agora”… (???) Seguir compassos? Nem pensar! Era de uma espontaneidade muito difícil para um acompanhamento musical “lógico”. A lisergia de Syd Barret era absurdamente natural, nada programada como iríamos ver um pouco mais tarde no rock progressivo.
Então os atritos começaram, e durante as sessões de mixagem, a relação esfriou. Barret resolveu pedir ajuda para o seu amigo e sucessor no PINK FLOYD, David Gilmour, que topou prontamente, pois passava as vezes pelo estúdio e gostava do material que ouvia. Tivemos um GRANDE atraso porque o Floyd tinha shows marcados na Holanda, enquanto Syd embarcava numa “marcha-hippie-enlouquecida” para Ibiza. A EMI não estava nada satisfeita com o dinheiro investido e a não finalização do álbum.
Quando a gravadora já pensava em arquivar o projeto, Gilmour em companhia de Roger Waters assumiram a produção do disco (além de tocar os instrumentos). E OITO músicas foram finalizadas, no total de TREZE. A última sessão pela pressão do horário, foi caótica ao extremo. As músicas, 10, 11 e 12 do LADO B (que também foram os últimos registros), deixavam isso CLARO! Mas falarei sobre cada faixa em questão… O título “The Madcap Laughs” (algo como “o louco que ri”) condiz com a crítica da Melody Maker no lançamento (em janeiro de 1970), que o álbum era “o exemplo de loucura e desordem da mente de Barret”. Ironicamente, a natureza “excêntrica” do disco, é o que o torna além de estimado por fãs de Barret, um CLÁSSICO da psicodelia!
A capa foi um registro fotográfico do próprio quarto de Syd, pois ele tinha acabado de pintar o chão de amarelo e roxo. O contraste com a sua silhueta ficou INCRÍVEL! Assim como a contracapa, onde uma amiga de Barret, NUA, a paquistanesa Evelyn Rose, aparece logo atrás dele. O resultado visual a exemplo do álbum ficou SOBERBO. Mas vamos as canções na ordem:
1 – “Terrapin” – Iniciando os trabalhos com crueza, só voz e acompanhamento (guitarra e o indefectível violão de nylon), uma pegada simples de blues. O vocal ainda na vibe do “The Piper”, aparentando um certo desleixo, mas proferido como mantra (mesmo quando sobe o tom), HIPNOTIZA! As quebras de andamento abruptas no ritmo, só tornam em consonância com a letra (declaração de amor inusitada, onde fala de peixes, do céu e outras imagens abstratas), um marco: o surgimento da psicodelia folk!
2 – “No good trying” – O instrumental é afiado demais, todo o Soft Machine está na faixa! Syd parece estar conversando com outra pessoa, em profundo sofrimento, e deixa implícito que a causa é amorosa. A mensagem parece de auto ajuda ao interlocutor. Inevitável não se colocar nessa posição… Os ecos e efeitos de guitarra, e a “cozinha” matadora, com destaque para as levadas de bateria, fazem desta faixa (também curta) uma experiência única!
3 – “Love You” – Palhetadas no violão de nylon e um delicioso piano que nos remete a standarts de um musical da Broadway, fazem desta a canção mais “good vibes” do disco. O Soft Machine mais uma vez faz um belo trabalho instrumental, a guitarra abafada com o violão de Barret traz um som único! A letra (como denota o título) é uma declaração desbragada de amor, que chega a comover…
4 – “No man’s land” – Quebradeira de ritmo constante, a bateria do menino Shirley (Humble Pie) corre atrás desesperadamente do ritmo, guitarras mais pesadas, é basicamente uma das marcas registradas de Syd Barret. Conta a história de uma terra desconhecida dividida por uma trincheira de guerra, onde a tensão é frequente. Após a audição, lanço um desafio: é sobre uma guerra real, ou uma metáfora ao estado mental de Syd nesse processo? Independente da sua escolha, a retórica é BEM PROFUNDA…
5 – “Dark globe” – A influência de Bob Dylan grita, só violão e voz no estilo trovador. É basicamente um pedido de ajuda, e nessa fica explícito que se refere a sua condição atual (desde a saída do PINK FLOYD). Mas claro que há uma mescla entre abstracionismo de imagens e o grito de desespero (esse é o seu grande diferencial genial), em frases de impacto comovente, onde a voz aguda com desafinação “das entranhas” demonstra isso! A maior ironia do destino é perguntar que se ele morresse, as pessoas sentiriam falta dele… E COMO, né? Primeira faixa produzida por Gilmour/Waters a aparecer no disco.
6 – “Here i go” – Quem será a protagonista da canção, uma suposta namorada, que não gostava das músicas de Syd? Que heresia! Também, ele acabou ficando com a irmã depois de tocar para ela, tudo devidamente resolvido… Essa balada com andamento acelerado (mais um belo trabalho de Jerry Shirley na bateria) que remete aos Beatles, repleta de ironia em sua história (a começar pelo “vozeirão” sério do vocal), fecha o Lado A de “The Madcap Laughs”.
7 – “Octopus” – Essa que abre o LADO B, foi o single do álbum. Primeiramente foi gravada como “Clowns and juglers” (essa versão é disponibilizada) com o Soft Machine, mas a versão que foi para o álbum foi esta com o baixo e a bateria gravados por David Gilmour. A levada irresistivelmente lisérgica e contagiante, com vocal PODEROSO, faz esse petardo ser o preferido de muitos nesse disco! A letra sintetiza a personalidade de Syd Barret: um conflito entre duas pessoas dentro de sua própria cabeça (o POLVO em questão), citando uma suposta viagem e pedindo para uma pessoa não interferir e deixa-los a sós. Mais psicodélico IMPOSSÍVEL! Aliás, o título do disco veio de uma sugestão de Gilmour após essa gravação… Obra prima!
8 – “Golden hair” – Essa soturna declamação, inspirada em um poema de James Joyce, é uma das músicas mais bonitas que já ouvi em toda a minha vida. A paixão referente a moça de cabelos dourados é singela, com o instrumental minimalista (só violão e pratos da bateria em um efeito conjunto inexplicável) e atmosférico simultaneamente, nos fazem embarcar numa viagem curta, mas irrepreensível!
9 – “Long gone” – A psicodelia folk começa “comendo solta”, para logo depois haver uma interação com um lindo arranjo de órgão, e os belos vocais de Barret, que exalam tristeza, ao contar a história de alguém que o abandonou… Mas ele afirma que irá esperar eternamente, para logo depois cair em si que isso não acontecerá! Denota o início de um quadro depressivo, e é de partir o coração… Outro trabalho primoroso!
As três faixas que virão a seguir merecem um adendo… Foram as últimas a serem registradas, em um curtíssimo espaço de tempo (algumas horas), onde nada parecia dar certo. A opinião é dividida: muitos acham que elas trazem ainda mais “honestidade” para o que estava acontecendo com Barret, outros muitos acham que foi desnecessário. O produtor inicial Malcom Jones ficou muito decepcionado e disse que pareceu uma cruel exposição de “lavagem de roupa suja”. David Gilmour diz que achava estar fazendo o melhor na época, mas se arrepende de algumas escolhas tomadas. Vamos lá:
10 – “She took a long cold look”, 11 – “Feel”, 12 – “If it’s in you”
Três canções de pegada folk, só voz e violão. Eram as últimas a serem gravadas… Syd sempre cantava de frente a um pedestal com as letras, olhando fixamente as partituras. Pois bem, durante as músicas ouvimos o virar das páginas, ele recomeçar abruptamente achando o tom em outra tentativa, e até falando com as pessoas no estúdio. Foi a audição de um colapso nervoso basicamente. Barret gaguejava em busca do resultado, e claro que o andamento fica absolutamente desencontrado. Ele desaba em “If it’s in you”… Era totalmente diferente do restante do material gravado. Mas em se tratando de Syd Barret, onde nada era tratado com normalidade, esse dito “caos” foi visto por GRANDE parte dos fãs como complemento da experiência psicodélica. Afinal de contas, onde vemos ATÉ OS DIAS ATUAIS registros dessa natureza?
As letras mantém o padrão SYD de excelência: “She took a long cold look”, narra uma conversa com um anjo em forma de mulher, onde ela o convence a voltar para a Terra, por não ter mais tempo para passar com ele, e o seu sorriso é apenas uma lembrança de dias melhores. “Feel” é uma balada com ótimos efeitos de eco na voz, onde descreve um possível envolvimento amoroso, onde a outra parte questiona o seu afastamento. Essa distância está envolvida em metáforas das mais diversas. O seu estado mental pode estar se afastando do seu verdadeiro EU, por exemplo… E “If it’s in you”, é uma grande colagem de imagens abstratas sobre o amor por uma parceira, e o desejo que tudo permaneça.
14 – “Late night” – O encerramento é com uma das primeiras gravações, onde a banda afiada fazia O POSSÍVEL para lhe acompanhar. E conseguem com maestria! Guitarradas que “estouram” psicodelicamente em um belíssimo instrumental. Mais uma angústia narrada, dessa vez um término de relação, onde temos a descrição aguda de todo o seu isolamento, solidão, e como toda a experiência o fez se sentir “irreal”.
Vocês possivelmente estão me perguntando: mas e “Opel”, a primeira música a ser apresentada em todo esse processo? Pois é, Malcom Jones acha um “pecado” absurdo que não tenha entrado no álbum. Já Gilmour diz que não se lembra da canção. Isso deixa bem claro o desnorteamento coletivo nas gravações de “The Madcap Laughs”. “Opel” é por muitos considerada A MELHOR faixa de Syd Barret com louvor. Ela foi lançada posteriormente em uma coletânea de sobras e raridades. A música entrou em TODAS as listas possíveis de “as melhores canções do século XX”, de publicações das mais diversas! Mais um mistério que cerca a produção desse clássico…
Lançado em janeiro de 1970, porque é tão importante historicamente? Syd mostra como se faz lisergia com simplicidade, de um jeito instintivo, sendo PUNK muito antes do termo existir. Lembrando que o marco inicial dessa sonoridade era o seminal “Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band” dos Beatles, com um experiente produtor a frente de incisões das mais diversas, como orquestra e instrumentos exóticos. O próprio “The Piper at the Gates of Dawn” de sua ex banda, apesar de ser mais direto que melódico, tem grandes arranjos, afinal os músicos já eram de excelência frente aos seus instrumentos. Barret mostrou que “uma mente e um violão” apenas pode causar um estrago. SYD BARRET é a própria psicodelia reencarnada em um ser humano. Dois anos depois ele “sairia do ar” até os seus últimos dias em 2006, e nunca mais faria música. A sua influência para as gerações subsequentes é ÍMPAR! Item obrigatório em qualquer discografia.
Por Alessandro Iglesias