Álbum das Escolas de Samba de 2016 é direto: Os sambas voltaram a ser protagonistas

Geralmente quando são lançados os álbuns das agremiações, o público do carnaval quase sempre debate sobre o formato da produção e como eles são gravados. Para 2016 a discussão foi outra: “Qual o melhor samba?”. Assim foi recebido o trabalho das escolas de samba, que será lançado oficialmente apenas no dia 4 de dezembro. Novamente a gravação foi feita ao vivo, na Cidade do Samba, onde mais de quatro mil sambistas, produtores e técnicos participaram das gravações, que teve clima de desfile na avenida. Só que desta vez a excelente safra superou até mesmo o bom trabalho dos produtores Laíla, Mário Jorge Bruno e Luís Carlos Reis.

Nos últimos anos o formato (e principalmente a qualidade) dos sambas de enredo vêm sofrendo uma transformação profunda, como não se via desde o fim da década de 80. Foi nela que as obras sofreram um empobrecimento em letra e melodia para atender a um público cada vez menos interativo na plateia e tempo limite para desfiles que obrigavam escolas a voarem na Marquês de Sapucaí. Nos anos 90, algumas boas memórias musicais mantinham viva a esperança dos fãs. O auge da queda do gênero se deu em meados dos anos 2000, onde letras paupérrimas e melodias duvidosas povoaram todos os grupos e expulsaram de vez o sambista mais tradicional e os ouvintes sazonais. E o marketing negativo imperou: “Não se faz mais sambas como antigamente”, diziam as pessoas de fora. O fato era tão perturbador, que a LIESA, a liga das escolas de samba, introduziu a possibilidade das agremiações de reeditarem sambas enredos famosos e de outras épocas, do passado, como comemoração de 20 anos do Sambódromo. Porém o que se viu na Avenida foi um abismo musical entre sambas antológicos, como “Aquarela Brasileira”, com Império Serrano 1964/2004, ou “Lendas e Mistérios da Amazonas”, com Portela 1970/2004, e os atuais. As exceções existiam, porém cada vez mais raras.

Isso sem falar na escolha dos hinos oficiais em cada escola, que a cada ano se monopolizava pelo peso do dinheiro e sambistas tradicionais sem poder financeiro de competição. Alguns poucos nomes se destacavam em meio aos sambas pasteurizados e ganhavam os aplausos acumulados, como Gustavo Clarão, na Viradouro, que assinou obras de 1998 a 2007 (com exceção de 2004 e 2006) e Cláudio Russo, na Beija-Flor. Mas no fim da década de 2000 uma guinada aconteceu na cena. Com a entrada de novos nomes nas alas de compositores, alguns nem tão novos assim, com a união a outros que “lutavam” sozinhos, sacudiu o cenário e os bons sambas voltaram ao carnaval. Foi o caso da Portela com Diogo Nogueira, Império Serrano com Arlindo Cruz, Imperatriz com muitos nomes, Mangueira e tantos outros. Assim vieram “Império do Divino”, no Império Serrano em 2006, “Os Deuses do Olimpo na Terra do Carnaval”, na Portela em 2007, “Brasil de todos os Deuses”, na Imperatriz em 2010 com seu “Mar de fiéis” e alguns outros. Só que os chamados “sambas funcionais” eram maioria e faziam a diferença, afundando o gênero para um rumo que parecia sem volta.

Mas em 2012 a coisa mudou de vez. O samba voltou a fazer a diferença e não apenas “servir ao desfile”, como “dirigentes poderosos que criam tanta confusão” (como já cantou a São Clemente em 1990) queriam. Então a Portela causou um terremoto. Capitaneados por um consagrado nome da MPB, Wanderley Monteiro, Luiz Carlos Máximo, Toninho Nascimento e Naldo fizeram “. . .E o povo na rua cantando é feito uma reza, um ritual…” acabar virando “Madureira sobe o Pelô”, tamanha a força da obra e principalmente o refrão. Diferente, ousada, totalmente fora dos padrões que estava convencionado o julgamento da LIESA. A repercussão e popularidade atingiram níveis tão altos que o samba virou o hit daquele ano. E uma outra azul e branca, em Vila Isabel, com o campeoníssimo André Diniz, que se aliou a Arlindo Cruz (juntamente com os também veteranos Evandro Bocão, Leonel e Artur das Ferragens), brindando o público com “Você Semba Lá… Que Eu Sambo Cá! O Canto Livre de Angola”, quase tirou a escola do jejum de títulos. Foram dois desfiles onde os sambas fizeram a diferença. Depois daquilo, todos quiserem acompanhar ou ficariam para atrás.

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Então “A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo”, que ficou popularmente conhecido como “Festa no Arraiá”, mudou de vez os rumos. No que foi chamado de “Desfile onde o samba fez a escola campeã” (não foi apenas ele, obviamente), a Vila Isabel foi unânime, caiu na boca do povo e ganhou até as arquibancadas do Maracanã, como nos velhos tempos. Em paralelo, lá em Oswaldo Cruz, a Portela seguia triturando modelos antigos com “Madureira… Onde o Meu Coração se Deixou Levar”, em 2013. e “Um Rio de mar a mar: do valongo à Glória de São Sebastião”, em 2014. Em volta a tudo isso, as escolas co-irmãs desesperadas tentando fazer algo equivalente. Os “sambas funcionais” já não funcionavam nem mesmo como discurso velho…

Desde então nos deparamos cada vez mais com o samba sendo protagonista e fugindo dos padrões. À essa altura, o Acesso também já sentia o efeito e “Negra, Pérola Mulher”, no Império da Tijuca, e “Nem Melhor Nem Pior, Que Não Sai da Minha Mente.”, da Viradouro, se juntavam ao grupo. Mesmo com alguns “acidentes” ainda ecoando em forma de acordes, o samba, gênero musical, saia da UTI. E os formatos que rompiam com qualquer padrão ultrapassado iam se espalhando. Até que em 2016 ele deságua em um rio de obras que, juntas, formam o melhor álbum de samba enredo desde a década de 90.

Com certeza ao começar a ler esta resenha sobre o CD, você esperava encontrar a opinião sobre cada hino de 2016. Mas para entender como surgiram as poesias da obra da Imperatriz para o enredo “É o amor, que mexe com a minha cabeça e me deixa assim”. Do sonho de um caipira, nascem os filhos do Brasil”, sobre Zezé de Camargo e Luciano, era preciso entender como essa estética estrofe/refrão/estrofe/refrão foi pulverizada por Wanderley Monetiro e cia. Para se deliciar ao ouvir “Memórias de ‘Pai Arraia’ – um sonho pernambucano, um legado brasileiro!”, da Vila Isabel, com Martinho da Vila e tudo, precisava lembrar que não é de hoje que André Diniz e turma capricham. Ou então que o Salgueiro ao cantar o excepcional “A Ópera dos Malandros”, com um refrão que é tão afiado quanto a navalha da malandragem, teve Marcelo Motta (autor também do antológico “Candaces”, de 2007) e parceiros durante anos lutando para romper o estilo chamado “oba-oba” do qual a escola foi pejorativamente apelidada pelos sambistas. E como não se emocionar com Alemão do Cavaco, Almyr, Cadu, Lacyr D Mangueira, Paulinho Bandolim e Renan Brandão, que transformam a Mangueira na Bahia ao cantar Maria Bethânia?

A maior prova e que as escolas olharam para as suas raízes, se reinventaram e voltaram a ver o samba como o principal quesito, é a faixa da União da Ilha, onde Mestre Ciça resgata a batida de caixa tradicional da bateria na introdução, além da marcante “virada de três”, marca e identidade da escola insulana. Ao fundo, o excelente Ito Melodia grita: “Resgata, meu mestre! Resgata”. Ainda tem Unidos da Tijuca com o seu melhor samba desde 2003, assinada pela parceria de peso com Dudu Nobre, Gusttavo Clarão (olha ele aí de novo!), Zé Paulo Sierra e Cláudio Mattos; a Beija Flor com um samba totalmente fora do seu padrão de construção mais “pesado” e que novamente marca o sucesso da sua ala de compositores, além da Portela, de novo com Wanderley destruindo padrões, para nos lembrar: Sim, SAMBA DE ENREDO GANHA CARNAVAL. Sem falar em São Clemente, Mocidade e Estácio de Sá, que também apostaram em sambas de altíssima qualidade.

E a produção do álbum? Bem, isso se torna detalhe quando estamos falando de um CD que quase por completo é uma homenagem ao sambista, que durante duas décadas reclamava dos rumos do carnaval. A quem ainda aposta em sambas funcionais, um aviso: Os tempos mudaram…

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