Com crítica e resistência cultural, álbum do Carnaval 2018 traz sambas postulantes a antológicos
Sob perseguição cultural e ideológica, o Carnaval de 2018 vem sendo aguardado como um divisor de águas para as escolas de samba do Rio de Janeiro. Pelo menos em termos de samba isso não acontece com todas, mas o nível das obras novamente vai subindo gradativamente, algo que já ocorre há alguns anos no Grupo Especial e já contamos aqui. O CD, cujo lançamento oficial está marcado para o dia 1º de dezembro, na quadra da Acadêmicos do Salgueiro, traz em sua capa as duas campeãs: Portela e Mocidade. Variando obras que participaram de concursos internos e foram encomendadas, mesmo com enredos que engessam a inspiração dos compositores, o disco já é um aperitivo e tanto para fevereiro. Destacam-se os hinos da Beija-Flor, Padre Miguel, Mangueira e Paraíso do Tuiuti. A direção artística é de Zacarias Siqueira de Oliveira.
As escolas receberam um grande tiro no peito este ano quando a Prefeitura, sob comando de um Bispo da Igreja Universal (que sempre condenou abertamente a manifestação cultural mas recebeu amplo apoio político das agremiações nas últimas eleições), retirou quase que por completo o seu apoio. Político e financeiro, jogando a opinião pública propositalmente contra elas para uso próprio. Com menos dinheiro e infraestrutura para desenvolver seus desfiles, enredos críticos e temáticas patrocinadas se tornaram alternativas, relembrando algumas décadas atrás. E o disco de 2018 deixa isso evidente. Novamente repetindo a fórmula de sucesso dos anos anteriores, a produção e gravação foram feitas ao vivo na Cidade do Samba e depois finalizadas na Cia dos Artistas.
Este ano, porém, as gravações estão menos aceleradas, mais bem mixadas e sem o coral ao fundo “abafando” os intérpretes. Por falar neles, as vozes estão mais limpas e claras, dando vida e corpo às obras. Entretanto há um sério problema: o excesso de alusivos, partes que são introduções. A belíssima obra da Mocidade Independente de Padre Miguel, uma das campeãs do último Carnaval, só começa com um minuto e 20 segundos. Mas a qualidade do conjunto compensa. A escola de Padre Miguel este ano fala da Índia e abre o disco, repetindo enredo patrocinado e com temática internacional, como em 2017. Com um dos melhores sambas do ano, novamente traz no seus muitos compositores o Altay Veloso. Refrão fortíssimo e melodia que passeia por entre tom menor e o lírico. Um dos candidatos a marcantes.
Portela, agora com a professora Rosa Magalhães, apresenta um dos grandes enredos do Carnaval ao falar da imigração nordestina e influências. Carregado de crítica e História, marca da carnavalesca, o samba seguiu essa linha com um refrão ainda melhor que o do último desfile e melodia maravilhosa. Ele mantém a “fuga dos padrões”, marca da escola há cinco anos. A primeira estrofe tem 15 versos, algo atípico, com dois refrãos maiores e dois outros menores. Destaque para o verso “22 vezes minha estrela lá no céu”, algo que o portelense persegue há anos.
O Salgueiro vem em seguida, com uma linda abertura, cantada pela Zezé Motta. Agora com duas novas vozes ao lado do Leonardo Bessa, Hudson Luiz e Tuninho Júnior, o tema “Senhoras do Ventre do Mundo”, uma referência ao mesmo verso do samba de 2007, é mais um afro como a Vermelho e Branco adora. O samba descreve de forma correta a história, tentando dar fluência ao canto, algo que as escolas buscam.
Depois é a vez da Mangueira com seu tão polêmico e necessário enredo. Numa explícita crítica ao corte de verba político do prefeito Marcelo Crivella, “Com Dinheiro ou sem Dinheiro, eu Brinco!” é uma mensagem direta e com um excelente hino. Com experientes compositores, veteranos de outras grandes obras no passado recente, transborda inspiração em alguns versos, como o refrão principal “Eu sou Mangueira, meu senhor, não me leve a mal / Pecado é não brincar o carnaval!”. E isso tudo envolto numa melodia com cara de Verde e Rosa. Certamente um dos melhores do disco.
A Grande Rio aposta no Velho Guerreiro para manter sua característica dos últimos anos, onde tentou flertar com temáticas mais leves e com personalidades populares. Depois do Neymar e Pelé com Santos e Ivete ano passado, Chacrinha rendeu um samba alegre, em tom maior e funcional. O refrão é de fácil assimilação e com melodia que lembra ao da abertura dos programas do ícone da Tropicália. Como Caxias é uma das comunidades mais fortes na Sapucaí, tem tudo para funcionar.
E se estamos na Baixada Fluminense, hora de outra obra que está um patamar acima das demais: Beija-Flor de Nilópolis. A agremiação, que tem como marca a qualidade da sua ótima coleção fonográfica nas últimas quatro décadas, também levará um enredo crítico. “Monstro é Aquele que não sabe Amar. Os Filhos Abandonados da Pátria que os pariu” fala de muitos problemas sociais, culturais e discriminatórios. O samba é um primor. Talvez a melhor poesia do ano e com um Neguinho da Beija-Flor, no disco, fazendo jus a sua figura lendária. E melodicamente é “Padrão Beija-Flor”: pesado quando precisa ser e feito para o componente acostumado a ele. Mais uma vez a crítica aparece: “Me chamas tanto de irmão / E me abandonas ao léu / Troca um pedaço de pão / Por um pedaço de céu”.
Cantando os 200 anos do Museu Nacional, a Imperatriz, capitaneada pela voz do Arthur Franco, levará um bom samba para a Sapucaí. A obra não foge aos padrões estruturais, ao contrário do que a escola vinha fazendo nos últimos três carnavais. A melodia na segunda parte é muito bonita. Com o sempre animado e carismático Ito Melodia, a União da Ilha apostará num hino mais funcional para cantar a culinária brasileira no “Brasil Bom de Boca”. A letra é correta e atende às necessidades do tema. Mas a cada ano a turma insulana aposta num estilo diferente de cantar na Avenida.
A faixa a seguir é uma das mais bem gravadas e gostosas de se ouvir: São Clemente. Leozinho Nunes, uma das revelações do Carnaval, a cada ano melhora seu desempenho no disco. O “Academicamente Popular” tem um ótimo refrão principal e música que passeia por várias nuances melódicas, o que não cansa quem ouve e torna o samba muito forte. Se visualmente pode render grande desfile, musicalmente também já vem rendendo. Um dos compositores é o talentoso Gusttavo Clarão, referência no gênero durante a década de 2000.
Embalada pela chegada do atual campeão Paulo Barros, a Vila Isabel tem um dos melhores intérpretes atualmente, Igor Sorriso. E isso fez sua obra crescer muito entre a disputa interna e a gravação. A melodia tem algumas passagens diferentes das aplicadas, como na preparação para a entrada no refrão do meio. E isso combina com o enredo futurista e alternativo do seu carnavalesco. Um casamento que tem tudo para ser interessante. Miguel Falabella já foi carnavalesco em 1995 e 1996 do Império da Tijuca. Mas agora volta à Sapucaí como tema da rival da escola do Morro da Formiga, a Unidos da Tijuca. E a agremiação repete a fórmula de anos anteriores, onde aposta num samba com estrutura definida, letra bem encadeada no enredo e, principalmente, um fantástico intérprete dando vida a tudo isso: Tinga.
Com um dos mais fantásticos sambas do ano e, provavelmente, da própria Azul e Amarelo de São Cristovão, o Paraíso do Tuiuti. Ao contrário das co-irmã e indo de encontro à tendência que já ocorre no Grupo de Acesso, o hino foi encomendado a um grupo de compositores. Com uma letra absurdamente poética, “Meu Deus, meu Deus, está Extinta a Escravidão?”, que é uma referência ao famoso verso do antológico “Sublime Pergaminho”, da Unidos de Lucas 1968, é uma obra-prima. Celsinho Mody, campeão do carnaval de SP, Nino do Milênio e a bela voz de Grazzi Brasil, prometem uma ode ao bom gosto no dia do desfile. Este é um dos sambas onde se deve falar pouco e ouvir muito. Principalmente os versos “Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor / Tenho sangue avermelhado / O mesmo que escorre da ferida” ou “Preto velho me contou, preto velho me contou / Onde mora a senhora liberdade / Não tem ferro, nem feitor”.
E encerrando o disco está de volta o Império Serrano. No microfone, o excelente Marquinho Art’Samba, uma das melhores e mais peculiares vozes do samba atual. Fugindo totalmente da sua característica de resistência cultural e enredos extremamente politizados, a Serrinha traz a Rota da Seda como enredo. O samba, ao contrário, mantém a tradição de ser bom. A Verde e Branca de Madureira é uma fábrica de hinos antológicos, então o “sarrafo está sempre alto”, como se diz na gíria, quando falamos dela. Cheia de metáforas quanto ao tema e o momento atual da agremiação, versos bem encadeados e uma ótima melodia fazem o sambista ficar com vontade de ouvir novamente todo o álbum.
Classificação: Bom
Gostei das análises.
Não achei a análise do samba de enredo do Império Serrano.