Olha a crítica! Ótimo álbum das Escolas de Samba resgata a sua resistência cultural

Por Bruno Guedes

A guerra está declarada. Após três anos sob ataque do prefeito Marcelo Crivella e enredos com viés mais críticos, as Escolas de Samba abraçaram de vez a temática que durante várias décadas foi marca do carnaval carioca. O álbum de 2020, principal quesito de comunicação entre público e agremiações, aumenta o tom com os sambas mais engajados, forte questionamento e boa produção. Os sambistas voltaram a entender que são resistência e precisam do povo.

PRODUÇÃO E GRAVAÇÃO

O diretor artístico do CD é novamente Zacarias Siqueira de Oliveira, com produção e distribuição das Universal Music e Edimusa. As gravações aconteceram nos estúdios da Companhia dos Técnicos, em Copacabana, ao contrário das tomadas ao vivo, na Cidade do Samba, como acorreu de 2010 a 2019.

Ritmistas das agremiações participaram das tomadas, em número bem menor que nos outros anos, mantendo assim as características e ritmo de cada bateria. O coro muito alto, um problema que durante a década foi questionado, desta vez não aparece. Bem como o andamento mais próximo a de um CD.

Outra diferença são as introduções. Menores e mais limpas, não tomam mais quase um minuto das faixas. Torna não só o trabalho mais fluente, como também mais acessível a quem quer ouvir exclusivamente os sambas.

O disco foi oficialmente lançado no começo de dezembro em uma festa que excluiu os sambistas e foi restrita a convidados. Porém, com a popularização dos streamings e cada vez menos o trabalho físico, foi nas últimas semanas que entrou na lista dos mais ouvidos.

Com muitas críticas, oriundas principalmente dos bons enredos questionadores de 2020, ao menos cinco obras se destacam entre as demais como as melhores do ano: Grande Rio, Mocidade, Mangueira, Beija-Flor e Portela. O viés mais popular na linguagem também ajudou nessa retomada recente das Escolas em apostarem na qualidade dos sambas.

Afastadas do público, chutado da arquibancada para que turistas torrem as centenas de reais empregadas nos ingressos, as agremiações pelos menos brindaram seus torcedores com bons hinos que continuam de graça cantá-los. Por enquanto…

MANGUEIRA

“Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão”

Campeã do carnaval, a Mangueira mantém sua temática crítica com um samba fora dos padrões, muito questionador e inteligente em sua letra com o “A Verdade Vos Fará Livre”. Com reflexões fortes e comunicação imediata, a obra traz novamente os compositores Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo.

O ponto alto é a primeira estrofe, parte em que a melodia – que não é das mais fáceis para o canto – vai crescendo até o ótimo refrão do meio “E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão”. Esse casamento entre versos e e música o tornam um dos melhores do ano! A verde e rosa vem forte na briga pelo bicampeonato.

VIRADOURO

“Ó, mãe! Ensaboa, mãe!
Ensaboa, pra depois quarar”

Vice-campeã, a escola de Niterói apostou num samba de pré refrão principal altamente popular e comunicativo para o enredo “Viradouro de Alma Lavada”. A obra traz um time multi-campeão em diversas agremiações: Cláudio Russo, Paulo César Feital, Diego Nicolau, Júlio Alves, Dadinho, Rildo Seixas, Manolo, Anderson Lemos e Carlinhos Fionda.

A letra descreve o tema com fidelidade e tem uma melodia que pode garantir os 40 pontos que o quesito pede. É um típico samba que explode na Avenida se bem executado. Além de ter todas as características pra isso, conta com um enredo que puxa pela emoção.

A primeira parte é ascendente e tenta cativar o componente. Um trunfo para quem vai desfilar numa das piores posições, a segunda a entrar no domingo de carnaval, precisando de comunicação rápida e resposta positiva dos presentes. Vale destacar mais uma ótima gravação do intérprete Zé Paulo.

VILA ISABEL

“Brasília, joia rara prometida
Que Nossa Senhora de Aparecida
Estenda o seu manto
Pro povo seguir”

Apostando em um samba encomendado, ao estilo de 2010, a Vila Isabel narra os 60 anos de Brasília com “Gigante pela própria natureza: Jaçanã e um índio chamado Brasil”. E a obra ficou imensa. São 41 versos.

Até por isso, o hino, apesar de apresentar bem a temática e ter letra com algumas partes que soam como se já tivéssemos ouvido em outros carnavais, parece ter refletido o pragmatismo de um enredo CEP (que homenageia lugares). Porém é funcional, como se costuma dizer no meio quando serve ao que se propõe: embalar a escola. O excepcional Tinga, mais uma vez, dá show na faixa.

PORTELA

“Índio pede paz mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem “bispo”, nem se curva a “capitão”

A Majestade do Samba levará para a Sapucaí um dos melhores sambas de 2020 para cantar “Guajupiá, Terra Sem Males”. Com um refrão fortíssimo, Valtinho Botafogo, Rogério Lobo, José Carlos, Zé Miranda, Beto Aquino, Pecê Ribeiro, D’Sousa e Araguaci conseguiram achar o equilíbrio perfeito entre melodia e letra.

Apesar de contar com três refrões, não cansa. Pelo contrário, cada um deles tem uma tonalidade maior que explode, intercalando estrofes descritivas e mais líricas e que preparam para a entrada. Sem falar no tom crítico e direto, que torna a comunicação ainda mais rápida e reflexiva. Certamente uma das grandes obras da escola nos últimos anos.

A mensagem é direta para o prefeito Marcelo Crivella e o presidente Jair Bolsonaro no trecho supracitado. Ousado, forte e corajoso. Nada que o portelense não conheça, já que sempre foi característica na sua história.

SALGUEIRO

“Olha nós aí de novo
Pra sambar no picadeiro
Arma o circo, chama o povo, Salgueiro!
Aqui o negro não sai de cartaz
Se entregar, jamais!”

Com “O Rei Negro no Picadeiro”, a Academia do Samba vai apresentar a história do primeiro palhaço negro do Brasil, Benjamin de Oliveira. Sem fugir do teor crítico, cita o racismo e faz paralelos importantes sobre o momento em que vive o país. É tipicamente uma obra nota 10. A segunda estrofe tem excelente mensagem e versos. Refrões fortes e melodia totalmente encaixada para funcionar em um desfile tipicamente salgueirense.

Émerson Dias repete atuações fantásticas que vem tendo nas gravações. Sua voz se enquadrou perfeitamente com o Salgueiro, escola muito popular e cuja torcida é imensa. Com ele, o lendário Quinho e seus inconfundíveis cacos como “ai, que lindo” e “pimba”.

MOCIDADE

“Brasil, enfrenta o mal que te consome
Que os filhos do planeta fome
Não percam a esperança em seu cantar”

Há anos esperando por essa homenagem, o componente da Mocidade aplaude uma das grandes figuras da sua história com um sambaço em “Elza Deusa Soares”. Rrefrões fortíssimos em letra e melodia, ainda contam com a voz do Wander Pires, já uma das maiores de todos os tempos. Os versos intercalam a descrição do enredo com crítica a desigualdade social, machismo e racismo. Temas necessários e urgentes.

Outro ponto forte é a emoção transmitida. Para falar de Elza Soares esse tom é necessário. E os autores conseguiram. Além da consagrada Sandra de Sá, os demais compositores que acertaram em cheio na obra são Igor Vianna, Dr. Márcio, Solano Santos, Renan Diniz, Jefferson Oliveira, Professor Laranjo e Telmo Augusto. Se nos últimos carnavais a escola de Padre Miguel acertou na escolha, em 2020 mantém o padrão.

UNIDOS DA TIJUCA

“Vem, é lindo o anoitecer
Vai, eu morro de saudade
Todo mundo um dia sonha ter
Seu cantinho na cidade”

“Onde Moram os Sonhos” é o enredo que marca a volta do Paulo Barros à escola que o fez levantar três dos seus quatro títulos. Falando da Arquitetura, a obra foi encomendada a nomes de peso como Dudu Nobre e Jorge Aragão, mas tentou resgatar um pouco das características mais melodiosas do último desfile, onde teve um dos melhores sambas do carnaval mas os jurados não entenderam.

Algumas passagens são até incomuns pelo lirismo, como o refrão do meio. Aliás, um samba diferente pode ser melhor descrição para ele. Em meio a tantos outros que fogem aos padrões, uma escolha certa. Também traz mensagens em tom crítico, principalmente no refrão principal. Bom desempenho do veterano Wantuir, cuja identidade com a escola do Borel é marcante.

PARAÍSO DO TUIUTI

“No Morro do Tuiuti
No alto do Terreirão
O cortejo vai subir
Pra saudar Sebastião!”

Uma das escolas responsáveis pela volta da temática crítica, a escola de São Cristóvão, desta vez, fugiu da polêmica e focou na religiosidade. Enredos com essa pegada conseguem ser populares e quase unânimes em aceitação. Padroeiro da agremiação e do Rio de Janeiro, “O Santo e o Rei – Encantarias de Sebastião” vem com obra encomendada mais uma vez. E repete a ótima fórmula. Pelo terceiro ano seguido o Tuiuti tem um dos melhores hinos do carnaval.

Apesar de grande, a letra é muito bem desenvolvida e resolvida, com melodia forte e que cresce em diversas partes, como os refrões. Aliás, estes são curtos e com métrica acelerada, o que ameniza essa característica de muitos versos nas estrofes. Um grande samba, no sentido de qualidade. Celsinho Mody e Nino do Milênio fizeram ótima presença no CD.

GRANDE RIO

“Okê! Okê! Oxóssi é caçador
Okê! Arô! Odé!
Na paz de Zambi, ele é Mutalambô!
O Alaketo, guardião do Agueré”

Escola que na última década pecou – e muito – em termos de samba, a Grande Rio parece que voltou aos seus tempos de glória musical. Além de ter a melhor obra para o carnaval, um hino emocionante para o enredo “Tatalondirá. O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias”, que homenageia o Babalorixá Joãozinho da Goméia.

A obra, composta por Derê, Robson Moratelli, Rafael Ribeiro e Toni Vietnã, é “cantada” pelo caboclo Pedra Preta, responsável pela orientação espiritual do homenageado. A letra, muito bonita, descreve sua vida com bastante poesia e melodia fortíssima.

Há trechos que remontam aos modelos de décadas anteriores, com bastante melodia lírica. Casos dos versos “Bailam os seus pés / E pelo ar o bejoim / Giram presidentes, penitentes, yabás / Curva-se a rainha / E os ogans batuqueiros pedem paz”.

Tudo isso é realçado ainda mais na voz do excelente Evandro Malandro, intérprete dos melhores nessa nova geração. Caxias apostou alto. E acertou em cheio. É seu melhor samba desde 1997.

UNIÃO DA ILHA

“O morro vem pro asfalto e dessa vez
Esquece a tristeza agora…
É hoje, o dia da comunidade
Um novo amanhã, num canto de liberdade”

Com “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: Salve-se quem puder!”, a escola insulana preferiu apostar em mais uma obra funcional. Os versos tentam descrever o enredo de forma linear e com palavras de fácil assimilação, canto e métrica. O que é uma aposta importante para um tema complexo.

Mas nem por isso a crítica passa batida. Como quase todas as demais obras, dispara a indignação durante a segunda estrofe e mostra alinhamento quanto ao assunto mais abordado este ano: desigualdade social. É um tema difícil e que o samba tentou ao máximo explicá-lo.

BEIJA-FLOR

“A vela que acende, a dor que se apaga
A mão que afaga se torna corrente
Nilopolitano em romaria
A fé me guia! A fé me guia!”

Acostumada a abrir o CD, local destinado às campeãs do ano anterior, a escola nilopolitana aparece na décima primeira faixa, demonstrando o desastre que foi seu desfile em 2019. E parece que isso impactou em cheio na agremiação. Voltando à sua temática religiosa e de negritude, “Se essa rua fosse minha” originou uma das melhores obras deste carnaval. Seu refrão marcante e sua letra aguerrida lembram os hinos da Beija-Flor nos anos 2000.

Quase todo em tom menor, com exceção da segunda estrofe, traz versos reflexivos e, como é marca deste ano, críticos. O “Preceito”, que abre a cabeça do samba, é propositalmente ambíguo à palavra “Prefeito”. Uma cutucada no alcaide pentecostal e sua política de combate à cultura afro-brasileira. Ah… e ele está lá. A lenda Neguinho da Beija-Flor. Um patrimônio cultural.

São Clemente

“Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!
E o País inteiro assim sambou
“Caiu na fake news!”

É impossível falar de crítica e carnaval sem falar da São Clemente. São quase sinônimos. E desta vez a escola de Botafogo “senta a porrada” com força, como nos seus bons tempos dos anos 80. O enredo “O Conto do Vigário” critica tudo que mais revolta os brasileiros nos últimos anos. Vai de falsos pastores até a políticos, passando por pirataria, cartomantes picaretas e até mesmo o VAR! Tudo isso com a história da falcatrua nas entranhas do país como pano de fundo.

A letra é um primor de ironia, ousadia e atualidade. A melodia, praticamente toda em tom maior, é daquelas que interage de primeira com o ouvinte. Apenas no começo da segunda estrofe vai para menor, mas retoma na preparação do excepcional momento da obra: o pré refrão.

Entre os compositores está o comediante Marcelo Adnet junto com André Carvalho, Pedro Machado, Gustavo Albuquerque, Gabriel Machado, Camilo Jorge, Luiz Carlos França e Raphael Candeia. Uma das grandes faixas do disco, ainda mais com a ótima gravação dos não menos competentes Leozinho, Bruno Ribas e Grazzi Brasil.

ESTÁCIO DE SÁ

“Vai, São Carlos
À força dos ancestrais
Pedra fundamental do Samba”

Escola que volta ao Grupo Especial, a Estácio de Sá, com o toque da genial Rosa Magalhães, vai para a Sapucaí com “Pedra”. O samba destoa do disco, já que foi uma final confusa e só dias depois finalizada. Apesar de funcional, acaba não conseguindo se destacar tanto quanto os demais e em um ótimo álbum.

Mesmo assim, tem letra que consegue passar o enredo e tratar do assunto com facilidade. É possível lê-la e entender a roteirização proposta pela carnavalesca. A melodia, um pouco linear, é quem acaba cansando. Soa repetitivo. O experiente e sempre forte Serginho do Porto entrega mais uma vez grande interpretação.

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