RITA LEE: 40 anos da explosão de “Lança Perfume”

Rita Lee Jones já colhia os louros mediante a alcunha de “rainha do rock’n’roll brasileiro”, título merecidamente conquistado na década de 70, após trabalhos seminais frente as bandas Mutantes e Tutti-Frutti, e o primeiro disco solo (“Babilônia”). Sua postura “empoderada” (para usarmos um termo atual) e o entrave com as condições da metade dessa década, tempos de grandes guinadas sócio-culturais e contínuas trovoadas no cenário político brasileiro, lhe conduziu para compor o protagonismo do rock no país.

Um casamento conturbado com o companheiro de Mutantes, Arnaldo Baptista (que protagonizou os tabloides), aliada a uma prisão arbitrária grávida (1 ano por posse de maconha) apenas contribuíram para a pecha transgressora em plena ditadura. Mas na verdade, o cetro foi colocado acima de seus flamejantes cabelos ruivos, em virtude da multiplicidade sonora (início na psicodelia, depois uma simbiose de rock básico com blues, MPB e hard) e suas performances incendiárias, onde carregava uma inerente teatralidade (Alice Cooper e David Bowie eram seus maiores ídolos), além de um lindíssimo timbre vocal!

Mas por incrível que pareça, lhe faltava o reconhecimento popular que era incensado nessa época: se tornar uma grande vendedora de discos. Não bastava uma coleção de hinos como: “Agora só falta Você”, “Esse tal de Roque Enrow”, “Ovelha Negra”, “Luz del Fuego”, “Cartão Postal”, “Arrombou a Festa”, “Jardins da Babilônia”, “Miss Brasil 2000”, “Eu e meu Gato”… Uma quantidade de singles poderosos, mas infelizmente era um padrão do momento vigente. A popularização dos LPs praticamente impunha isso a figura do artista, como sendo algo essencial para o “sucesso”. Até chegarmos a um acontecimento importante em sua carreira: o casamento afetivo e musical com o guitarrista e produtor Roberto de Carvalho. Em “Babilônia”, Roberto já havia trazido algumas incidências da música Disco e do Pop mundial.

Então “finalmente” em 1979, a marca “Rita Lee & Roberto de Carvalho” (título de todos os álbuns a partir de então) trouxe um grande impacto fonográfico (500.000 cópias), capitaneado por petardos como “Mania de Você”, “Chega Mais” e “Doce Vampiro”. Apesar da empatia popular, as “pedradas” vieram: acusaram Rita de ter se vendido ao mercado (“cadê a roqueira?”) e apostavam que o sucesso não passaria do próximo verão. Enquanto isso, lotava estádios em sua turnê mais bem sucedida até então, mostrando que a postura rock nos palcos permanecia intacta paralelamente as mudanças sonoras!

Aproveitando o grande momento, entram em estúdio para a produção do oitavo álbum autoral, com a ajuda novamente de Guto Graça Mello na produção. “Lança Perfume” como acabou ficando conhecido, é considerado a grande obra-prima do pop nacional. Simplesmente TODAS as músicas tiveram execução radiofônica. Os singles foram distribuídos pela Europa e América do Norte, fazendo a música-título ficar dois meses no topo das paradas da França.

Mais de 800.000 cópias vendidas (disco de ouro, platina e diamante) imediatas, especial na TV Globo (além das músicas nas novelas) e citada pela celebridade do momento, o príncipe Charles da Inglaterra, como sua cantora preferida. Rita Lee estava no céu! Além da incidência sonora mais acessível, que possibilitou toda essa guinada, o casal Rita e Roberto estavam em um ápice de paixão, com a temática do disco permeando em torno dessas experiências. Mas vamos ao faixa a faixa:

1 – “Lança Perfume’

A bela introdução ao piano, seguido do riff no sintetizador em parceria com um baixo funkeado da pesada, são a base sonora desta obra-prima! Conforme a música vai se desenrolando, surpresas vão brotando, como um belo fraseado de guitarra, naipes de metais, percussão latina e efeitos diversos. Vai fluindo de forma crescente, acompanhando a evolução da letra, que obviamente faz uma metáfora sutil ao entorpecente apelidado. A premissa é sexual e envolvente, os versos “me aqueça, me vira de ponta cabeça, me faz de gato e sapato, me deixa de 4 no ato, me enche de amor” são docemente repetidos até a surpresa do refrão. “Lança Perfume” é um brado expurgado que beira o carnavalesco, com apitos e um clima non-sense, mas fica óbvia a influência das produções DISCO MUSIC de Lincoln Olivetti (que participa do álbum). Simplesmente sensacional! Impossível ouvir e não dançar imediatamente ou ficar com toda a melodia grudada na cabeça após a primeira audição.

2 – “Bem me quer, mal me quer”
 
Seguindo o caminho aberto por “Lança Perfume”, está pérola segue a mesma tendência, mas dessa vez evocando as influências rock de Rita, com riff de guitarra, belíssimo solo, e se não fosse a polida (e proposital) produção, poderia ser um Hard Rock de primeiríssima. A letra exalando ironia, mostra em uma “DR” de casal, a mulher protagonista reivindicando PRAZER e exalando auto-confiança em versos hilários, como “você tem ciúme mas gosta de me ver rebolar, eu topo tudo, sou flor-que-se-cheire em qualquer lugar” e “rasgue a minha roupa, mas por favor não dê beliscão, eu fico nua, depois você reclama quando chamo a atenção”, algo NADA comum naqueles tempos. Fora a metáfora com a brincadeira do “bem me que, mal me quer” (que era utilizada em flores sendo despetaladas”) do refrão. Grande canção e dando voz para as mulheres se libertarem em caráter nacional!

3 – “Baila Comigo”

Mais um clássico irrepreensível, começa como uma singela balada, onde a letra filosofa sobre elementos da natureza, espiritualidade e existência, para se transformar em uma latinidade irresistível no refrão (evocando o desejo de uma vida indígena)! A canção tem ares líricos, os vocais são lindamente executados e um solo de flauta dá uma mudança etérea sensacional, que nos remete ao rock progressivo. Mais uma pérola POP de altíssimo nível! Detalhe, a fase como compositora era tão “iluminada”, que Miss Lee afirmou que a criação se deu em cinco minutos, após ter sonhado com a canção. Ficou muito tempo no imaginário coletivo, já que meses após o seu lançamento, foi tema de abertura da novela (de Manoel Carlos) que recebeu o mesmo nome, e também foi um grande sucesso. Vale destacar o número de dança ao lado do saudoso coreógrafo e cantor Ronaldo Resedá (partiria em 84) no especial da rede Globo, considerado um dos momentos antológicos da televisão brasileira.

4 – “Shangrilá”

Intensidade! Esta é a tônica dessa balada que cresce e se alterna sonoramente de uma forma incrível! Começa com uma bela introdução de violões, para pela primeira vez no álbum vir com vocais mais soturnos, crescendo numa levada de bossa-jazz, novamente com uma pitada latina. A explosão se dá pelo desejo de fugir com o amado para Shangrilá, uma espécie de paraíso, dando uma guinada no baixo astral da letra. Na verdade, esta música foi de um projeto antigo de Rita (Cilibrinas do Éden), que pela melancolia exasperada nos versos, foi vetada pela censura. Roberto de Carvalho sugeriu a solução romântica em prol da suicida do registro original. Belíssimo encerramento para o lado A.

5 – “Caso Sério”

“A inspiração era a diva Ângela Maria em um bar decadente e esfumaçado em Cuba, destilando boleros para dançarmos apaixonados”. Por essa descrição imagética, já percebemos qual será o cerne de mais um grande HIT na carreira da dupla, não acham? Uma balada swingada, mas obviamente “embolerada”, com um grande arranjo de piano, solo de violão e assobio de rara beleza, contribuindo para o excepcional resultado. O final em clima de jam-session, tem um coral que torna as coisas mais “calientes”, onde o clima de romantismo automaticamente parte para a sedução. A expressão de duplo sentido “misto-quente, sanduíche de gente”, acabou virando jargão popular para um namoro mais “ousado”. Rita exalando sensualidade para todos ao redor! Foi uma das canções mais regravadas do seu repertório.

6 – “Nem Luxo nem Lixo”

Aqui resolve falar sobre um tema sério e que sempre afligiu a nós brasileiros: a desigualdade social. Não é um discurso panfletário, mas existencial e porque não, de auto-ajuda. “Não quero luxo, nem lixo, meu sonho é ser imortal meu amor. Quero é saúde para gozar no final!”, são versos encorajadores, mesmo com o toque de humor que lhe é peculiar. “Como vai você, assim como eu, uma pessoa comum, um filho de Deus”, nitidamente acenava com uma aproximação com o cotidiano do seu público (que crescia cada vez mais), desmitificando a aura de ídolo. O instrumental traz uma “groovezera” de primeiríssima (que arranjo!), e mais uma vez percebemos a clara influência da assinatura BLACK/DANCE do maestro Lincoln Olliveti. A quebrada na cadência do refrão (para um ar MPB), foi um excelente elemento surpresa, o que só engrandeceu ainda mais esta fantástica canção. Detalhe, Rita alegou que a música nasceu de outro sonho, e foi concebida após acordar. Quando a fase é boa, somos iluminados até dormindo, né?

7 – “João Ninguém”

Ao ouvirmos nos dias atuais essa letra, ela pode muito bem servir para qualquer figura burguesa, com seus desprezíveis ares de superioridade. Mas na verdade, foi uma “referência” ao então Presidente, General João Baptista Figueiredo, o último da ditadura militar. Depois de tanta perseguição, não perdeu a oportunidade em “dar o troco”, já que acenávamos com um processo de democratização, o ar ao redor estava mais “brando”. Uma levada de reggae, com toques caribenhos, destila todo o incisivo deboche dos versos. Como a austera censora da época, Dna Solange (posteriormente “homenageada” por Léo Jaime em uma música) não percebeu todo esse escracho?

8 – “Ôrra meu”

A transgressão e o rock’n’roll que sempre lhe foram peculiares, não ficaram de fora e encerraram o Lado B. A expressão regional “Ôrra meu”, no refrão, era uma forma de acentuar suas raízes paulistanas. “Nunca fui de muito papo e sei que meu negócio é farra”, “juventude transviada para mim é conto de fada”, “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”. Os brados deixam claro que a intenção era desmitificar a figura dos amantes de rock, mas ao mesmo tempo dando óbvios sinais de provocação para os conservadores de plantão. Fez parte eternamente do set-list dos shows, e sempre consistia em um momento de catarse!

A partir de então, Rita Lee passou a ser uma das vozes mais conhecidas do Brasil. Não só o canto proliferou, sua imagem poderosa foi alçada a condição de símbolo sexual, panorama que ela sempre demonstrou desconforto em ocupar. Se tratava de uma performer, além de compositora e intérprete de mão cheia, e era por essas qualidades que almejava ser reconhecida. Claroooooo que as críticas vieram a tiracolo, com Roberto de Carvalho sendo acusado de ter “pausteurizado” demais a sonoridade, e isso destronaria a ruiva do posto de rainha do rock’n’roll brasileiro.

Obviamente, os trabalhos subsequentes a “Lança Perfume” vieram com a mesma pegada, mas o carisma de Rita era tão poderoso, que sua atitude nunca deixou de ser reconhecido pelas gerações roqueiras que iam se sucedendo. E o próprio repertório, mesmo com a “arejada” POP, não sofreu boicotes, a qualidade saltava aos olhos! Isso se restringiu aos críticos mais radicais apenas. Este registro que aniversaria 40 anos, parece uma coletânea com tantos sucessos, o que é realmente um feito incrível! Nossa reverência a um dos maiores clássicos da música popular brasileira!

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