Tim Maia: 50 anos do álbum de estreia, o marco zero do soul brasileiro

Por incrível que pareça, o sucesso DEMOROU a bater as portas de Tim Maia! Após fazer parte da turma do Matoso no bairro da Tijuca (formada por Carlos Imperial, Roberto Carlos, Jorge Benjor, Erasmo Carlos, entre outros), Rio de Janeiro, e integrar a banda de rock The Sputniks, foi para os EUA em 1959. Como Nelson Motta posteriormente afirmou, foi sua grande escola. Se deparou com a efervescência da música black americana (James Brown, Sly & The Family Stone, etc), e entre um sub-emprego e outro, emergiu de cabeça nessa sonoridade. Invadiu o circuito de pequenos bares, onde aprimorou o ouvido musical (sempre “colava” em quem estava por trás da mesa de som) e o “vozeirão” que seria a sua marca registrada.

Ralou bastante, chegando a participar de um grupo vocal, o The Ideals, até ser deportado por roubo e porte de drogas. Percebeu que o cenário fonográfico nacional estava em ebulição, com alguns amigos capitaneando o sucesso do movimento da Jovem Guarda e muitos outros sofrendo a repressão da ditadura militar. Após o espanto inicial, tratou de colocar logo o “bloco na rua”, tendo quatro músicas suas gravadas: “O Durão” (Almir Ricardi), “Você” (Eduardo Araújo), “Não quero nem saber” (Erasmo Carlos) e “Não vou ficar” (Roberto Carlos, um grande sucesso, trilha do filme “O diamante cor de rosa”). Também produziu o disco “A onda é o Boogaloo” (Eduardo Araújo), além de um compacto com seus primeiros registros, “Meu País” e “Sentimento”, que infelizmente “passaram batido” (surpreendentemente não aconteceram).

A coisa só foi começar a esquentar quando conheceu Nelson Motta. Estava produzindo o disco de Elis Regina, e convidou Tim para um dueto com a cantora em plena ascensão. “These are the songs”, composição sua, linda balada a altura dos standarts americanos (sucesso imediato!), trouxe a seguinte pergunta ao público: DE QUEM ERA AQUELA VOZ? Aquele estilo gospel emocional de cantar não era usual por essas paragens, e acharam automaticamente que se tratava de um americano.

Simultaneamente, o homem forte da gravadora Phillips, o executivo André Midani, queria uma novidade em seu casting para a década de 70 que se aproximava. Consultou amigos da cena musical, como Erasmo Carlos e Os Mutantes, e ambos foram unânimes: Tim Maia era o cara que pedia passagem! Ao ouvir “These are the songs” no rádio, soube que se tratava da mesma pessoa, e mandaram desesperadamente encontra-lo! Então dois anos após o retorno ao Brasil, finalmente foi convocado para a gravação do seu primeiro LP, pelo selo Polydor, com direção de Alberto Saccomani (sim, ELE MESMO!) junto a Jairo Pires. O resultado foi IMPRESSIONANTE! Os singles lançados foram todos uma comoção, rompeu a barreira que existia no Rio de Janeiro entre as zonas norte e sul, o subúrbio e a área nobre… Mas discorreremos melhor no faixa a faixa:

1 – Coroné Antônio Bento

Já chegou “arrombando a porta” nessa primeira faixa! Não queria se limitar a transmitir todo o feeling adquirido da soul music, mas sim fundir com a música brasileira, uma verdadeira revolução! Trata-se de um forró/baião “arretado” (música de Luiz Wanderley e João do Vale), com participação do grupo Os Diagonais (inclusive nos vocais da segunda parte da música), onde sua marca registrada no canto se faz presente: rouquidão em tons graves, com raríssima técnica. Não parecia com NADA o que havia sido feito até então no país, o impacto foi imprescindível!

2 – Cristina

Em parceria com o amigo Carlos Imperial, um soul da pesada, onde o resultado fantástico de suas linhas vocais não passaria em vão, pois passaria a figurar entre os maiores cantores do país. Nem houve a premissa de revelação, o que acontecia aqui era muito especial. Um grande clamor! Pena que a canção acabe tão rápido, fica claro a urgência de Tim em transmitir o seu recado (um provável temor em não cansar o ouvinte na estreia). Mas que dá uma vontade irresistível de continuarmos a saga do homem que precisa ver Cristina a todo custo, isso dá!

3 – Jurema

A transgressão continua em sua simbiose particular: ponto de umbanda cantado em inglês! Uma suingueira de embalo irresistível, impossível o “esqueleto não começar a balançar” no “groove da batida”! Pérola novamente urgente em sua duração, que também deixa um gostinho de “porque já acabou”? Fica perceptível que essa transição rápida, só colaborou para o processo de elemento surpresa do disco como um todo. Era um impacto atrás do outro, sem tempo para respirar!

4 – Padre Cícero

A brasilidade continua comendo solta! Mais uma mistura de baião com soul, onde o clima épico e heroico da canção, retrata a emblemática figura religiosa provinda do nosso Nordeste. Primeira das muitas parcerias com o genial compositor Cassiano no álbum. A marca registrada dos backings em falsete é irresistível! E vamos combinar, a música black americana não louvava os seus heróis com enfase racial? Maia mantém a tradição de historicidade, mas fazendo questão de engrandecer o vulto nacional. Saiu antes como abertura da novela “Irmãos Coragem” com a letra modificada com o nome do protagonista (João Coragem, Tarcísio Meira). Clássico!

5 – Flamengo

Torcedor do América, mas com grande admiração pelo Flamengo (posteriormente gravou o hino do clube no ano do seu centenário), Tim Maia antecipava em 1970 todas as tendências possíveis ao trazer o futebol para um instrumental de base funk. A levada hipnótica do groove (sax e órgão em primeiro plano) só é quebrada pelo brado de “Flamengo!”, e uma vibração no fundo emulando o grito de uma torcida. Basicamente soa como uma vinheta e fica nítido que o “homi” definitivamente experimentava sem medo…

6 – Você fingiu

Aqui começa uma sequência de canções repletas de emotividade, compostas por Cassiano, no qual mostra toda a potência, extensão e interpretação dramática do seu raro tom de voz. Outro fator a pontuar, são as belas orquestrações “a la Isaac Hayes” (arranjos todos criados pelo próprio). Margem para improviso vocal é o terreno onde demonstrava mais segurança, impressionante! Se ainda impacta atualmente, imaginem em 1970? Fim do lado A.

7 – Eu amo você

O lado B começa com uma sucessão de baladas fenomenais, deixando bem claro que a verve romântica era avassaladora! A letra de Cassiano, o componente emocional, e os improvisos repletos de feeling e dramaticidade, pareciam ter sido “tirados da cartola”, pois brotavam no meio de uma atmosfera singela. Fatalmente levou muitos ouvintes as lágrimas! E pensar que essa maravilha era apenas a primeira das obras-primas nesse contexto no álbum…

8 – Primavera [Vai chuva]

O sucesso avassalador do primeiro compacto lançado (com “Jurema” no outro lado), credenciou a gravadora a trabalhar no primeiro álbum de Tim Maia sem riscos. A música automaticamente chegou aos primeiros lugares das paradas, e não é por acaso! Está entre suas canções mais conhecidas do grande público. Realmente trata-se de uma obra-de-arte com caráter imprescindível. O arranjo é um dos mais primorosos da história da música popular brasileira (cordas dos maestros Waltel Branco e Waldir Arouca Barros), e o tijucano instaurava definitivamente a “motown nacional”!

9 – Risos

Inaugura-se uma de suas parcerias mais furtivas: com o cantor e compositor Fábio! Aliás, a história da música é impressionante. Fábio mostrou a Tim descompromissadamente no violão o esboço de levada bossa nova do que viria a ser “Risos”. Duas semanas depois, ele retornou com o arranjo fantástico que entrou no disco, para espanto total do compositor: “como ele guardou tudo na cabeça (inclusive a letra) só tendo ouvido uma vez”? A memória musical de Tim Maia sempre assombrava todos ao seu redor…

10 – Azul da cor do mar

Triste, sozinho em casa, sem dinheiro… Os amigos todos em uma festa que não pode ir, pegou o violão e entre muita melancolia e lágrimas, se inspirou ao olhar fixamente para um quadro que adornava a parede. Era a imagem de uma mulher saindo do mar. E assim, surgia a inspiração para uma das mais belas canções do planeta. Coisa de gênio! Simples assim… Mais um sucesso arrebatador! Eu poderia escrever um livro destacando todos os pontos primordiais que fazem esta canção ser tão magistral (que letra!!!), mas vou apelar: se você por acaso nunca a ouviu (o que me recuso a acreditar), faça isso AGORA! Pois não se arrependerá, posso garantir.


11- Cristina nº 2

Lembra que pedimos mais lá atrás? Pois é, uma verdadeira “pegadinha” que caímos. Aqui temos basicamente a mesma canção, numa levada mais acelerada e frenética. Merecíamos todos realmente ver Cristina um pouco além. Detalhe, reparem na cadência do baixo e sua construção melódica, um primor!

12 – Tributo à Booker Pittman

A música-tributo ao recém falecido saxofonista, inteligentemente foca o arranjo em um naipe do instrumento em questão. Voltamos a língua inglesa, em mais um exemplar de rara beleza e com irresistível suingue mais jazzístico. INCRÍVEL encerramento, a altura de todo o contexto impactante que ouvíamos até aqui!

Estreia avassaladora! Tirou Roberto Carlos do topo das paradas, execução radiofônica frenética, vários clássicos surgidos, mas não foi apenas isso… Revigorou a música brasileira com uma estética completamente nova. Não se tratava apenas de reproduzir o soul em português, mas criou o nosso, deliciosamente particular. E sem criar um nicho, a aceitação beirava as raias da unanimidade. Tudo começou aqui!

O “soul brasileiro” abriu espaço para uma cena incrível que possibilitou novos artistas acontecerem, como os já citados Cassiano e Fábio, além de Dom Salvador e Grupo Abolição, Toni Tornado, Maestro Erlon Chaves e Banda Veneno, Tony Bizarro, Carlos Dafé, Hyldon, etc. Passados 50 anos, impressiona como continua estupidamente atual, mesmo com todas as tendências de música preta brasileira surgidas desde então. Item mais do que obrigatório em qualquer discografia. Salve Tim Maia!

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